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Análise das propostas para uma Lei de Bases do Clima

A campanha Empregos para o Clima recebeu um pedido da Assembleia da República por parte do Grupo de Trabalho “Lei de Bases do Clima” da Comissão de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território. O Grupo de Trabalho partilhou as oito propostas de Lei de Bases do Clima e pediu sugestões e contributos. Analisámos as propostas e gostaríamos de partilhar com o público algumas das nossas conclusões.

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Em primeiro lugar, gostaríamos de alertar com preocupação que as propostas de Lei de Bases do Clima não são baseadas no clima mas na negociação política. As metas (quando mencionadas) ou as normas para definir metas – seja de redução das emissões de gases com efeito de estufa, seja doutras políticas – não seguem os ditames da melhor ciência climática. Em vez disso, as propostas reflectem o consenso político actual, independente da ciência. Nesse sentido, gostaríamos de aproveitar para sensibilizar os decisores políticos sobre o estado actual da ciência climática:

Relatório especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) sobre Aquecimento Global de 1,5°C, [ligação externa], o relatório que representa o consenso científico mais alargado em relação ao clima;

Carbon Budget Calculator, [ligação externa], onde pode ser consultado o significado do orçamento do carbono em termos de trajectórias de emissões de acordo com o relatório do IPCC acima-mencionado;

Multi Equity Map, [ligação externa], um mapa interactivo em que podem ser consultadas as cortes de emissões necessárias em cada país de acordo com várias opções de distribuição histórica das responsabilidades;

Climate Equity Reference Calculator, [ligação externa], onde podem ser criadas trajectórias de emissões para cada país, de acordo com parâmetros manualmente seleccionados.

As fontes acima-listadas utilizam princípios diferentes para produzir as trajectórias de emissões e são todos regularmente actualizados. Sublinhamos a importância de actualização e revisão regulares das metas estabelecidas de acordo com a evolução da ciência climática, que muitas das propostas de lei incorporaram. Contudo, achamos que uma Lei de Bases do Clima deve servir como a linha condutora das políticas climáticas, definindo claramente os princípios e a metodologia no estabelecimento das metas.

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Talvez o ponto que gostaríamos de destacar é que, nas propostas, a transição climática é abordada como algo que acontece à sociedade, em vez de ser algo que a sociedade faz. As pessoas, poucas vezes mencionadas, aparecem para comentar as políticas já definidas. Em nenhum caso aparecem os trabalhadores como agentes da mudança. Os sindicatos só aparecem uma vez, dentro do Conselho Económico e Social, e duma forma meramente consultiva.

Para haver uma transição climática, terão de ser os trabalhadores a construir uma economia verde. Por isso, é essencial garantir o envolvimento dos trabalhadores ao longo do processo inteiro – um elemento inexistente nas propostas.

Esta transição também significará a destruição de alguns postos de trabalho, nomeadamente nos sectores intensivos em carbono. Os trabalhadores que construíram a economia e contribuíram para o desenvolvimento da sociedade merecem reconhecimento por isso e, independentemente desse reconhecimento, devem ver os seus direitos laborais respeitados. Gostaríamos de alertar que o aprofundamento do conceito de transição justa é muito insuficiente (se não inexistente) em todas as propostas. Neste sentido, uma condição necessária para uma Lei de Bases do Clima é a inclusão dos seguintes aspectos, para todos os trabalhadores dos sectores intensivos em carbono:

• garantia de formação profissional prévia ao encerramento,
• garantia de emprego na economia verde,
• garantia de rendimento nos casos de desencontro na transição, e
• envolvimento deliberativo dos trabalhadores, das Comissões de Trabalhadores e dos sindicatos na definição dos calendários.

Para isso acontecer, será necessária uma intervenção directa por parte do sector empresarial do estado. Reconhecemos que algumas das propostas mencionam este aspecto, apesar de não desenvolverem de forma suficiente o mandato e a responsabilidade do sector público. Em outras propostas, a entrega da transição ao mercado de carbono preocupa-nos, não só em termos de gestão democrática, mas também do próprio sucesso das políticas.

Neste sentido, gostaríamos de sublinhar a necessidade de investimento e emprego públicos nos sectores de energia, transportes, edifícios, economia circular, agricultura e floresta. O relatório da campanha Empregos para o Clima [ligação externa] expõe a ligação entre emprego e a transição justa.

Queremos também lembrar que a campanha Empregos para o Clima desenvolveu 10 medidas legislativas [ligação externa] que podem ser implementadas muito rapidamente. Todas estas medidas cortam directamente emissões, criam empregos e combatem injustiças sociais. Apesar de serem medidas legislativas, na nossa compreensão podem servir como um guia na elaboração da Lei de Bases do Clima. Por exemplo, a Lei de Bases do Clima deve, para além da transição justa acima-mencionada, garantir um forte empenho nos transportes públicas colectivos, fazer uma ligação entre a redução do horário laboral semanal e a transição climática, e fomentar a criação de empresas públicas nos sectores-chave, em termos das emissões.

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Por último, uma Lei de Bases do Clima deve responsabilizar as empresas poluidoras que nos levaram ao caos climático mesmo sabendo há décadas do impacto das suas actividades. Reconhecemos a menção em algumas das propostas de pôr fim aos subsídios às empresas poluidoras, apesar de acharmos todos os prazos referidos neste sentido insuficientes, porque tardios. Gostaríamos, em particular, de sublinhar a nossa preocupação com a “fiscalidade verde”, que põe os cidadãos comuns a pagar a mitigação: esta abordagem não só vem contra os princípios da justiça climática mas também é ineficaz em reduzir as emissões. Pelo contrário, nos sectores intensivos em carbono, as empresas e os seus accionistas devem ser responsabilizadas duma forma directa para garantir o rendimento e a requalificação dos trabalhadores e para financiar uma transição justa. Recordamos que em França, a gota de água que deu origem ao célebre movimento de contestação dos “coletes amarelos” foi precisamente a imposição de um imposto sobre o combustível, em particular o diesel, pago de igual modo por todos os consumidores, independentemente da sua condição económica. Para a transição ser bem sucedida e gozar de amplo apoio popular, este tipo de erros não podem ser repetidos. A Lei de Bases do Clima deve ser clara e explícita no seu enquadramento da responsabilidade e deve estabelecer travões para possíveis políticas que possam aumentar a pobreza energética e reduzir o acesso à mobilidade para as pessoas.

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De forma geral, ainda que com algumas excepções, as propostas de Lei de Bases do Clima parecem-nos tratar a crise climática como mais um tópico entre muitos e ignorar a complexidade e a urgência ligadas à transformação sócio-económica necessária.

Achamos pertinente não só pôr as pessoas e o planeta no centro deste debate, como garantir que as questões laborais, a transição justa e o controle público dos meios de produção (nos sectores mais fundamentais, como a geração e armazenamento de energia, os transportes colectivos, a regeneração das florestas), e a participação activa de toda a sociedade – desde o primeiro momento de desenho das política públicas, e não apenas a posteriori, a jeito de proforma – tenham um papel muito mais integral numa futura Lei de Bases do Clima.

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