Esta nota da equipa editorial da nova edição do relatório Empregos para o Clima em Portugal, explica porque é que o relatório visa reduções de emissões altamente ambiciosas em todos os setores da economia, e como este interage com as políticas climáticas existentes.
O Relatório Especial sobre os Impactos do Aquecimento Global de 1,5ºC, elaborado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), alerta para o facto de que o mundo precisa de atingir zero emissões líquidas de CO2 até 2050 para ter 66% de probabilidade de permanecer abaixo do catastrófico limite de aquecimento de 1,5ºC.
A União Europeia adotou um Pacto Ecológico Europeu que prevê atingir a neutralidade carbónica até 2050. O plano climático do recém-eleito presidente americano Joe Biden refere também o ano 2050 como o prazo para a neutralidade carbónica. Já o governo português preparou e adotou um Roteiro para a Neutralidade Carbónica para 2050. O Japão anunciou também, recentemente, que o país alcançaria a neutralidade carbónica até 2050, tal como alguns dos outros países do Norte Global. Da mesma forma, o governo chinês veio anunciar o seu compromisso para com as zero emissões líquidas até 2060.
Tudo isto constitui um problema gigantesco. Listamos abaixo quatro motivos de preocupação em aceitar o atual alinhamento político: levantamos questões sobre as perspetivas científicas, técnicas, políticas e de justiça global.
1. Serão as metas de neutralidade carbónica para 2050 baseadas na Ciência Climática?
O relatório do IPCC descreve vias de emissão onde consta que, se as emissões globais de CO2 forem reduzidas a metade em 2030 e chegarem ao zero líquido em 2050, então existe uma probabilidade de 66% de não ultrapassar o aquecimento de 1,5ºC até ao final deste século. Isto significa que, se seguirmos este caminho para atingir o zero líquido em 2050, há ainda uma probabilidade de 1 em 3 de atingirmos um aquecimento superior a 1,5ºC.
Isto é probabilidade de 1 em 3 de um colapso dos sistemas terrestres. (Em comparação, a probabilidade de um acidente de avião é de 1 em 10.000.000, e mesmo assim muitas pessoas têm medo de voar). Este número não pode ser reduzido ao princípio da precaução, uma vez que se trata da sobrevivência humana por completo: se alguém lhe dissesse que existe uma probabilidade de 1 em 3 de a sua casa queimar até às cinzas esta noite, conseguiria dormir?
Gostaríamos de relembrar que os relatórios do IPCC estão, por regra, do lado conservador da ciência, subestimando metodologicamente os impactos e futuros possíveis.
Além disso, os relatórios do painel baseiam-se em modelos lineares – os melhores que podemos usar com rigor no momento – e, deste modo, não quantificam as possibilidades de mudanças climáticas descontroladas, devido a mecanismos de feedback positivo inerentes ao clima da Terra, como a perda do efeito albedo, o derretimento do permafrost, o colapso das florestas, e o metano que é libertado do fundo do oceano.
Deste modo, argumentamos que a meta global de zero emissões líquidas até 2050 é assustadora demais, independentemente de outras considerações políticas e económicas. É necessário atingir a neutralidade carbónica antes de 2050, para termos uma mudança climática à qual a adaptação seja tecnicamente possível.
2. Emissões líquidas vs. não emissões
As emissões líquidas são definidas como emissões recorrentes das atividades humanas do quotidiano, menos aquelas que capturam e fixam carbono (as chamadas emissões “negativas”).
A mudança gradual do discurso de “emissões” para “emissões líquidas” foi uma grande vitória política para a indústria de combustíveis fósseis, pois desviou o foco das atividades industriais reais para truques contabilísticos.
Quando os governos se referem às emissões líquidas, quase sempre têm em mente algum tipo de tecnologia de emissão negativa que entraria em vigor mais cedo ou mais tarde, para equilibrar as emissões reais.
Algumas destas tecnologias, tais como projetos de geoengenharia à escala planetária, existem apenas na mente de algumas pessoas, sendo o seu único impacto real tranquilizar a opinião pública sobre os riscos climáticos. Outras, como a captura e o armazenamento de carbono, têm aplicações insignificantes, e são geralmente consideradas tecnológica e economicamente inviáveis (sem falar nos problemas sociais, ambientais e éticos relativos à sua implementação).
O relatório do IPCC traça quatro trajetórias que limitam o aquecimento global a 1,5ºC, das quais três dependem dessas tecnologias, embora no mesmo relatório sejam mencionadas, algumas páginas antes, que as mesmas “enfrentam grandes incertezas e lacunas de conhecimento, bem como riscos substanciais e restrições institucionais e sociais à implementação relacionados com a governação, ética e impactos no desenvolvimento sustentável.”
Por fim, a arborização maciça é também considerada responsável pelas emissões “negativas” que poderiam “compensar” as emissões fruto de atividades quotidianas. As florestas desempenharão, certamente, um papel fundamental nos esforços de mitigação e adaptação para combater as mudanças climáticas. No entanto, plantar uma árvore apenas cria emissões “negativas” caso a entidade que a plante a proteja durante cerca de um século (grande parte do CO2 libertado no ar dissolve-se no oceano, ao longo de um período de 20 a 200 anos, embora seja possível que as moléculas de CO2 perdurem até 1000 anos na atmosfera). No presente, os principais autores destes esquemas são multinacionais de combustíveis fósseis que compram projetos de compensação algures no Sul Global, aumentando as suas quotas de emissão, independentemente do que acontece na realidade. Em alguns casos, as populações locais e povos nativos são expropriados, de forma a que as florestas naturais que não causam emissões negativas na contabilidade climática sejam transformadas (no papel) em florestas geridas por pessoas. Noutros casos, os projetos são inteiramente fictícios, criando especulações sobre possíveis corte de emissões algures, em alguma altura. Noutros casos ainda, um verão seco causa a queima dos offsets florestais, aumentando o balanço de emissões, não da empresa de combustíveis fósseis que a comprou, mas da empresa subcontratada que a opera. Escusado será dizer que, na melhor das hipóteses, a reflorestação nunca cria florestas, mas plantações.
Portanto, concluímos que os compromissos sobre as emissões líquidas não garantem necessariamente as reduções de emissões exigidas pelos modelos climáticos. É preciso fazer cortes drásticos nas emissões na vida real, em vez de promessas sobre neutralidade carbónica. Se queremos usar uma linguagem mais corrente, utilizando expressões como emissões líquidas e neutralidade carbónica, a fim de simplificar a comunicação, então devemos ambicionar prazos muito mais curtos.
3. Serão as metas de neutralidade carbónica para 2050 politicamente fiáveis?
Os compromissos e promessas de neutralidade carbónica chegam-nos de políticos que não negam abertamente a ciência climática, ao contrário de Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil, Vladimir Putin na Rússia e Recep Tayyip Erdogan na Turquia. Mesmo em países com eleições democráticas e justas, o prazo até 2050 envolve seis a sete governos.
Adiar a responsabilidade várias décadas tem outro problema: o nosso orçamento de carbono – o limite máximo para a quantidade de gases de efeito de estufa que ainda podemos emitir para ter a possibilidade de ficar abaixo do 1,5ºC de aquecimento – é um número. Todos os anos esgotamos este orçamento, acabando assim por ter menos tempo para reduzir as emissões. Levando a cabo as atuais tendências, esgotaríamos os orçamentos restantes até 2030. Por outras palavras, se continuarmos com a mesma taxa de emissões até 2030, teríamos de repentinamente desligar tudo e atingir emissões nulas líquidas nesse mesmo ano (em vez de uma redução gradual).
A Comissão de Carvão do governo alemão é provavelmente o melhor exemplo desta evasão de responsabilidades. Angela Merkel olhou-nos nos olhos e garantiu que o carvão não acabará até à sua morte1.
4. Será que as metas de neutralidade carbónica 2050 têm em consideração a justiça climática global?
Quando a UE e os EUA anunciam a meta da neutralidade carbónica para uma determinada data, estão também a dar um sinal ao resto do mundo. Outros países estabelecerão, e com razão, prazos posteriores para as suas próprias metas de emissões, tendo em consideração as responsabilidades e capacidades históricas (como se pode ver no compromisso assumido pela China para 2060).
Para atingir a neutralidade global de emissões até 2050, em 2049 apenas os países menos responsáveis pelas mudanças climáticas podem ter algumas (mas mesmo assim, insignificantes) emissões de gases de efeito estufa. Isto significa que os países do Norte Global devem alcançar a neutralidade carbónica muito antes de 2050.
Por um lado, a responsabilidade histórica pelas emissões ao longo dos séculos, assim como a capacidade dos países de atuar, devem ser consideradas para uma distribuição justa dos cortes nas emissões. A Calculadora de Referência de Equidade Climática demonstra como devem ser calculadas as emissões de cada país, com base numa variedade de parâmetros. A calculadora mostra, por exemplo, que o impacto real das emissões da União Europeia em 2030 deverá ser de emissões negativas, e da mesma magnitude das emissões reais de hoje: isto significa que até 2030 a UE deve ter emissões zero, e deve ainda contribuir para reduzir as emissões em outras partes do mundo na mesma quantidade das suas emissões de hoje.
Consideramos a justiça social global como um princípio fundamental e, portanto, adotamos as diretrizes da Calculadora de Referência de Equidade Climática.
No entanto, é também possível fingir que vivemos numa sociedade global onde todos os países negociam cortes de emissões em harmonia e cooperação, e considerar apenas as restrições de tempo atuais, e o impacto de uma transição justa. Os investigadores identificaram, de facto, dois parâmetros que devem servir para guiar esta discussão.
O primeiro parâmetro é a capacidade do país de financiar um plano de transição justo. Esta capacidade depende do nível de desenvolvimento do país. Regra geral, os países beneficiados pelo colonialismo têm uma maior capacidade de financiar um plano de transição justo, em comparação com os povos e territórios colonizados. Essa capacidade define se a transição justa do país deve depender, ou não, de apoio internacional.
Os investigadores apontam que, no extremo da capacidade elevada, a Alemanha e os EUA têm orçamentos estatais muito mais diversificados em comparação com Brunei ou Kuwait. Do lado da baixa capacidade, o mesmo se verifica com a Tanzânia e Moçambique, em relação ao Iraque e a África do Sul.
Portugal deve ter uma rápida eliminação e, de seguida, fornecer apoio rápido para uma transição justa no Sul Global.
A agenda para a justiça climática em Portugal deve ter como objetivo a Neutralidade Carbónica até 2030
Reconhecemos a dificuldade em alcançar a neutralidade de carbónica em dez anos, em qualquer país. A campanha Empregos para o Clima baseia o seu trabalho em ciência e evidências e, portanto, o nosso relatório guiar-se-á pelo objetivo da neutralidade carbónica em 2030. Reconhecemos ainda as incertezas sobre os inventários de emissões, e a complexidade de certos setores como os da agricultura, indústria e resíduos, onde a descarbonização completa apresenta desafios técnicos adicionais. Aceitamos esses desafios na preparação do relatório da campanha Empregos para o Clima e procuramos fazer o nosso melhor para nos mantermos em conformidade com eles.
Argumentamos ainda que a única transição viável é a transição justa. Consideramos que as estratégias de transição de energia baseadas em mecanismos de mercado foram testadas durante mais de duas décadas e falharam miseravelmente. As propostas do atual quadro político garantem um aquecimento superior a 3ºC, o que significa atravessar os pontos de viragem ao nível planetário antes de meados do século.
Um programa de empregos para o clima em massa é o único plano realista em termos climáticos disponível atualmente. É por isto que o nosso relatório revisto, a ser lançado em 2021, irá incluir melhorias consideráveis em relação à edição anterior em todos os setores e capítulos.
1 A Comissão propôs a eliminação progressiva do carvão até 2038. A esperança de vida das mulheres na Alemanha é de 83,3 anos. Merkel teria 84 anos em 2038.
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