Há muito que a crise climática se tornou um problema conhecido e estudado. Se há uns anos atrás os seus efeitos eram tidos como longínquos e distantes, a manifestação material cada vez mais intensa das suas consequências fez com que a atenção global para o problema crescesse cada vez mais. A década que passou foi a prova inequívoca da existência da crise climática, que provocou e normalizou várias catástrofes naturais tidas como raras e bateu recordes a todos os níveis. A um ritmo frenético e intensificado de ano para ano, as alterações climáticas impuseram-se como o verdadeiro desafio para a Humanidade. 2020 marca o início de uma década crucial para a ação climática.
E agora? Será que, após anos turbulentos, e mesmo com a consciência de que isto é só o início, as emissões estão a decrescer? Será que as previsões melhoraram? Quanto precisamos de cortar, e até quando?
Comecemos pelo início, introduzindo o que são as alterações climáticas e olhando para trás para rever o que aconteceu nos últimos tempos.
As alterações climáticas referem-se à mudança do clima da Terra à escala global, fruto do aquecimento global provocado pelo excesso de emissão de gases com efeito de estufa (GEE). Desde a Revolução Industrial, a Humanidade tem construído uma sociedade com base na queima de combustíveis fósseis como o petróleo, o carvão e o gás. O dióxido de carbono por eles emitido fica na atmosfera durante longos anos a absorver o calor do Sol, o que provoca um aquecimento à escala global. Assim, os sistemas naturais da Terra são alterados e os ecossistemas reagem com o derretimento das calotes polares, a acidificação do oceano, ondas de calor, aumento do nível da água do mar, secas, incêndios, inundações, perda de biodiversidade, entre outros desastres naturais que provocam conflito e tensão social.
Nos últimos anos, os recordes dos indicadores que nos apontam o estado do planeta (temperatura média, nível das águas do mar, emissões de GEE, entre outros) têm sido batidos sucessivamente. Em primeiro lugar, os seis anos mais quentes alguma vez registados são os últimos seis anos desde 2014. No ano de 2019 o nível médio das águas do mar chegou a um novo recorde desde que se começou a registar com precisão, tal como a temperatura média à superfície dos oceanos, que chegou a níveis extremos. O degelo nos pólos continua a uma velocidade acelerada, tendo 2019 sido o 32º ano consecutivo em que o derretimento das calotes polares acontece a um ritmo preocupante. No Ártico, 2019 esteve no segundo lugar do mínimo mais baixo de gelo marinho na região. Já no Antártico, as extensões mínimas de gelo continuam a diminuir, tendo sido batidos recordes em alguns meses do ano.
Ainda assim, as emissões de GEE continuaram a aumentar. Estes recordes foram refletidos nas dezenas de catástrofes naturais que marcaram 2019, deixando milhares de pessoas e comunidades destruídas. Logo em março, o ciclone Idai deixa totalmente destruída a região da Beira, em Moçambique, matando 1300 pessoas e causando estragos difíceis de reparar. O país é responsável por apenas 0,14% das emissões globais de GEE. No Irão, em Abril, as cheias destroem mais de 1 milhão de hectares de produção agrícola, arruinando a subsistência de muitas famílias. No Verão desse ano, a Amazónia arde de uma forma nunca antes vista, chamando a atenção de todo o mundo para o pulmão do planeta Terra, cuja existência e biodiversidade estão a ser aniquiladas pela sede de lucro. Também no Verão, mais de 600 incêndios florestais ocorrem no Alasca e mais de 13 milhões de acres ardem na Sibéria, regiões perto ou já acima do Círculo Polar Ártico. Em Setembro, o furacão Dorian atinge as Bahamas, deixando mais de 76 000 pessoas sem-abrigo e estragos por reparar ainda até hoje. Em Outubro, os fogos na Califórnia destroem totalmente várias comunidades. 7 dos 10 fogos mais destrutivos da Califórnia aconteceram desde 2015. No mês seguinte, Veneza regista as piores cheias em 53 anos. Já em Dezembro, os fogos na Austrália deixam o mundo perplexo e queimam quantidades inimagináveis de terra. Ainda nesse ano, o governo da Indonésia anuncia que vai mudar a capital de Jacarta para um local afastado do mar, que ameaça a existência das cidades costeiras.
2020 começa logo por ser um ano candidato à lista dos 5 anos mais quentes alguma vez registados. Em relação às temperaturas do período entre Janeiro e Junho, apenas o ano de 2016 ficou acima. Apesar do surto do novo coronavírus e das quarentenas obrigatórias em dezenas de países, os níveis de CO2 na atmosfera chegaram a um novo pico. Dependendo da evolução da pandemia, as projeções de redução de emissões para 2020 em relação a 2019 é apenas entre 4 a 7%, o que não só é um valor relativamente baixo, como não se traduz em nenhuma mudança estrutural que permita a redução das emissões a longo prazo. No seu pico no início de Abril, 89% das emissões globais estavam em áreas sob algum tipo de restrições. No entanto, a ideia do planeta a regenerar-se acabou rapidamente quando as emissões recomeçaram a subir outra vez e não havia sinal de políticas que impedissem o retorno à normalidade tóxica para o planeta. Para além disso, são também registados novos recordes preocupantes. Em Junho, ocorre em Verkhayansk, na Sibéria a temperatura mais alta acima do Círculo Polar Ártico: 38 graus. Nos Alpes italianos, a neve ficou cor-de-rosa devido a uma alga que se desenvolve com o aquecimento global e acelera o derretimento dos gelos. Ao longo do ano, foram registadas pragas de gafanhotos no Este de África que deixaram em risco de fome cerca de 20 milhões de pessoas. Em meados de Agosto, são registados 54.5ºC em Death Valley, na Califórnia, que poderá ser a temperatura mais alta alguma vez registada. Entretanto, na Antártida, o aumento da temperatura é três vezes superior à do resto do planeta.
Todas estas catástrofes são apenas o início da crise climática. De forma a assegurarmos as condições materiais seguras à continuação da civilização Humana, precisamos de não deixar ultrapassar o limiar do aumento de 1.5ºC em relação a níveis pré-industriais até 2100. Até à barreira dos 2ºC é ainda possível reorganizarmos a sociedade de forma a resistirmos aos exponenciais desastres climáticos. No entanto, a partir desta marca, são desencadeados mecanismos naturais com um efeito “bola de neve” que agravam os efeitos das alterações climáticos e contra os quais é quase impossível de proteger e assegurar qualquer tipo de estabilidade, vital para a Humanidade. Mesmo se todos os países assinantes do Acordo de Paris cumprissem todas as metas, ainda ultrapassaríamos os 2ºC até 2100. Com o aceleramento da crise e as políticas disponíveis, estamos a acabar esta década com a previsão de aquecermos uns catastróficos 3.2ºC acima dos níveis pré-industriais.
Temos exatamente 10 anos para cortar radicalmente as emissões de forma a não ultrapassar os 1.5ºC e evitarmos o colapso climático. Esta é a década decisiva. O mundo precisa de, até 2030, cortar globalmente 50% das suas emissões. Isto significa cortar anualmente pelo menos 7% das emissões. De forma a assegurar um corte justo entre países pobres e ricos, segundo o Paris Equity Check, Portugal tem de cortar entre 65,2 e 75,9% em relação a níveis de 2017 até 2030. Com poucos países ainda com o compromisso da neutralidade carbónica e as emissões a não darem sinal de decrescimento, o tempo aperta cada vez mais. No entanto, segundo os relatórios científicos, ainda é possível alcançar a margem dos 1.5ºC e logicamente, quanto mais anos de inação de acumulam, mais abrupta será a transição.
Veremos, então, o que esta década reserva para nós. E esperemos (e lutaremos para) que os cortes necessários sejam feitos de forma justa e radical, mitigando os efeitos já irreversíveis das alterações climáticas e organizando resiliência e equidade na sociedade.
Matilde Alvim é ativista da Greve Climática Estudantil – Fridays for Future Portugal.
Fontes:
- Climatefairshares.org
- Emissions Gap Report 2019
- Global Climate Report – June 2020 (https://www.ncdc.noaa.gov/sotc/global/202006)
- Le Quéré, C., Jackson, R.B., Jones, M.W. et al. Temporary reduction in daily global CO2 emissions during the COVID-19 forced confinement. Nat. Clim. Chang. 10, 647–653 (2020). https://doi.org/10.1038/s41558-020-0797-x
- WMO Statement on the State of Global Climate 2019
ganda alvim