A Comissão Europeia e o governo português dizem que está tudo bem. Centenas de milhões de euros de investimento, milhares de novos empregos, uma “nova estratégia de crescimento” (como diz o Pacto Ecológico Europeu). A transição climática está a caminho, só falta compensar quem irá perder o seu emprego, mas isso também está assegurado pelo Mecanismo de Transição Justa. Portanto, só devemos melhorar o que já temos, só devemos insistir que seja feito duma forma justa e/ou sustentável.
Esta história ignora o facto de que o orçamento de carbono da União Europeia acaba em 2030, isto se todos os Estados cumprirem todos os compromissos do Pacto Ecológico Europeu e apontarem para neutralidade carbónica em 2050. Em Portugal, o orçamento acaba entre 2026 e 2037, dependendo da distribuição global da responsabilidade histórica e das outras incertezas. A comunicação oficial esconde esta situação. A União Europeia divulga cortes grandes relativo a 1990, que significam poucos cortes hoje. Portugal divulga cortes grandes relativo ao pico de emissões em 2005. Ao mesmo tempo, as emissões globais estão estáveis. Isso significa que não está a acontecer uma “diminuição insuficiente” das emissões, porque não está a acontecer nenhuma diminuição.
O capitalismo verde está a instituir-se ao lado do capitalismo fóssil, colado a ele.
Neste contexto, centenas de milhões de fundos europeus estão a chegar a Portugal através do Fundo de Transição Justa. Este artigo extensivo tenta fazer um apanhado dos processos políticos e administrativos da transição justa e faz parte dum Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines que vai abordar outros temas e as infraestruturas relacionadas (existentes e planeadas) em artigos separados.
*
§1. Políticas climáticas: No âmbito do Pacto Ecológico Europeu foi criado um Fundo para uma Transição Justa em dezembro de 2020.1 O Fundo prevê um total de 17,5 mil milhões de euros para o período de 2021-2027. Uma parte deste dinheiro provém do Quadro Financeiro Plurianual e uma outra parte do NextGenerationEU (chamado de “bazuca”).
Numa apresentação pública em Novembro de 2021, a Ministra da Coesão Territorial Ana Abrunhosa divulgou que a Portugal foram alocados 224 milhões de euros deste Fundo. O governo vai dirigir este dinheiro para três territórios: Matosinhos (60 milhões) por causa da refinaria encerrada pela Galp, e Pego (90 milhões) e Sines (74 milhões) por causa das centrais termoelétricas encerradas em 2021.
Na mesma apresentação, a Ministra anunciou também duas novidades:
Portugal está a elaborar os três planos territoriais através das comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) e esses planos seriam divulgados em janeiro de 2022, o que ainda não aconteceu.
Por outro lado, os planos territoriais são um pré-requisito para o Fundo. Com o dinheiro europeu ainda a chegar, mas as infraestruturas já encerradas, o governo antecipou fundos para implementar medidas que a posteriori seriam cobradas pelo Fundo.
*
§2. Políticas empresariais: Aquando destes anúncios, muitas empresas lançaram campanhas comunicativas sobre os seus futuros investimentos, tudo embalado como partes duma transição energética. Alguns exemplos são o projeto de urbanização na zona onde esteve instalada a refinaria de Matosinhos, vários projetos de hidrogénio em Sines, um megacentro de dados em Sines que podia utilizar os terrenos contíguos da antiga central para montar painéis fotovoltaicos, planos de reconversão da central do Pego, e uma refinaria de lítio em parceria com a Galp. O número de notícias é esmagador. Muitas referem também os apoios financeiros.
Isto produz confusão sobre o que realmente está a acontecer, o que é previsto acontecer eventualmente, e o que é só um comunicado duma empresa sobre uma ideia que um gestor teve e partilhou numa reunião.
Quais são os critérios deste Fundo? Que tipo de apoios são incluídos? Que tipo de apoios são excluídos? O que pode acontecer no futuro e o que a sociedade civil pode reivindicar neste momento?
*
§3. O que é que a Comissão Europeia exige para alocação do Fundo para uma Transição Justa?
Os critérios de seleção para os projetos do Fundo são divididos em quatro categorias.
-
impactos sociais: perda e criação de emprego no território, necessidades de formação profissional.
-
impactos económicos: perda significativa de volume de negócios no território ou efeitos nas indústrias ou empresas ligadas à infraestrutura em causa (como processamento, transportes e logística).
-
impactos demográficos: impacto na coesão territorial, ou se o projeto reduz o possível êxodo da região.
-
impactos ambientais: planos para descontaminação do solo e água, riscos de saúde.
É exigido que os Planos Territoriais sejam integrados nos planos nacionais de descarbonização como o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050.
É também exigido que os projetos provem que terão efeitos até 2030. Ou seja, não podem ter efeitos só na próxima década, para concorrerem a este fundo em particular. Isto podia ser um critério bastante interessante para percebermos quais daqueles comunicados das empresas são verdadeiramente relevantes. Contudo, também é possível que o início de construção dum edifício administrativo (dum projeto de hidrogénio ou de centro de dados, por exemplo) seja contabilizado como criação de emprego e diversificação económica para evitar migração.
Os documentos divulgados dizem que a Comissão Europeia vai avaliar os projetos nestes sentidos.
*
§4. O que é que o Fundo oferece e o que não oferece?
Em primeiro lugar, há áreas genéricas que a Comissão identifica como elegível. Depois, há áreas específicas, divididas em duas categorias: por um lado a indústria e os processos industriais (ou seja, fábricas onde as emissões acontecem não por queima de combustíveis, mas por causa das reações químicas que resultam em libertação de CO2) e por outro lado o setor energético. Vamos começar com as genéricas.
§4.1. Diversificação económica. Com isto refere-se a apoios às empresas para criarem outros empregos no território em causa. Aqui foca-se muito no empreendedorismo e nas pequenas e médias empresas. Em casos extremos como comunidades de carvão (cidades inteiras criadas só por causa duma grande mina) onde toda a economia local está colada à infraestrutura por fechar, criar um novo dinamismo económico diversificado pode até ser relevante. Em Portugal estes casos extremos não existem e os trabalhadores das indústrias em causa têm uma média de idades altas e qualificações demasiado elevadas para aceitarem tornar-se precários voluntariamente.
O Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) encomendou um estudo de requalificação e identificação de oportunidade de empregos dos trabalhadores afetados pelo encerramento das centrais de Sines e de Pego. Este estudo menciona, em passagem, “oportunidades a curto prazo” em turismo para os ex-trabalhadores da central da EDP. O mesmo estudo diz que a idade média dos ex-trabalhadores é de 50 anos, sendo que quando olhamos para os trabalhadores diretamente contratados pela EDP Produção a média de idades acaba por ser 57 anos. As únicas oportunidades possíveis em turismo seriam estas pessoas saírem das suas casas para ir viver com o resto das suas famílias e alugarem as suas próprias casas como alojamento local. O Fundo pode talvez pagar a um funcionário do IEFP para explicar-lhes como se cria uma conta no AirBnB. Em outras palavras, ignorando exemplos ridículos, a diversificação económica neste sentido não nos parece relevante no caso de Portugal.
Por outro lado, este campo também serve para as grandes empresas. A Comissão é bastante clara que isto se aplicaria em casos limitados e os projetos deviam satisfazer quatro critérios ao mesmo tempo, nomeadamente o projeto tem de (i) ser necessário para a implementação do Plano Territorial para uma Transição Justa, (ii) contribuir para a transição, (iii) ser necessário para criação de empregos, e (iv) não resulta na realocação da indústria.
Esta definição explica duas coisas:
Em primeiro lugar, o porquê da Galp insistir em divulgar planos de descarbonização da sua refinaria em Sines e ao mesmo tempo falar duma refinaria de lítio. Se isso correr bem, a Galp podia simplesmente reorganizar as operações na refinaria, alterar a produção numa parte da refinaria, e receber fundos ao mesmo tempo que continua com a infraestrutura mais poluente a produzir lucros e emissões.
Em segundo lugar, explica também o porquê de haver tantos projetos de hidrogénio liderados pelas EDP e Galp em Sines. Estas empresas querem uma transição que seja “justa” para os seus acionistas. Despedindo os trabalhadores, querem arranjar novos negócios, mas querem que esta transição seja paga pelos fundos públicos.
Cada uma destas infraestruturas merece um foco especial detalhado que fará parte do Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines.
§4.2. Emprego. Há muitas expetativas de que o Fundo para uma Transição Justa combata realmente a perda de emprego. Estas expetativas são falsas.
O Fundo está disposto para pagar formação profissional e reconversão profissional, mas isto o Estado já devia estar a fazer a todos os trabalhadores.
O Fundo está disposto para assistência na procura de emprego, o que os centros de emprego já fazem.
O Fundo não está disposto para financiar reformas antecipadas ou regimes de compensação especial para os trabalhadores despedidos. Ou seja, no único caso em que o Fundo para uma Transição Justa podia contribuir para uma transição justa, a Comissão expressamente elimina esta possibilidade.
Portanto, vão acontecer os jogos contabilísticos de sempre, em que o Estado vai alocar o Fundo para o IEFP e depois desviar dinheiro do Orçamento do Estado que antes ia para o IEFP para compensar os trabalhadores. É pelo Fundo Ambiental que o governo paga a totalidade dos salários aos trabalhadores da central do Pego depois do encerramento.
§4.3. Para além destes, o Fundo apoia também investigação e inovação, investimentos em eficiência energética e energias renováveis, mobilidade local sustentável, digitalização, regeneração dos solos, economia circular e infraestruturas sociais de cuidados para as crianças e os idosos.
Com isto então abrimos o bolso todo, porque afinal o Fundo pode apoiar qualquer projeto que quiser, “se conseguirem justificar os seus contributos para mitigar os impactos da transição”.
Vai ser assim então a “transição” a que referimos no início deste artigo: já que 328 trabalhadores da central termoelétrica de Sines perderam os seus empregos, haverá em Sines dezenas de projetos sobre qualquer tema, cada projeto justificando a sua existência com a existência destas 328 pessoas (dizendo que está a criar emprego numa zona onde uma central foi encerrada), e vai receber fundos europeus sem ter de contratar qualquer uma delas.
§4.4. Deixando o setor energético para o último, chegamos então à indústria. Estas são fábricas já listadas no Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE), ou seja, nos mecanismos de mercado para as quotas de emissões na Europa. As instalações industriais têm de cumprir três condições simultaneamente, nomeadamente, têm de (i) contribuir para a transição, (ii) cortar as emissões substancialmente e para além das metas do CELE, e (iii) ser necessários para proteger um número significativo de postos de trabalho.
O Fundo não apoia reduções incrementais nas emissões que não resultam numa mudança estrutural nas operações. Também não apoia processos já lançados pelo CELE, como eficiência energética ou recuperação térmica.
O Fundo está disposto a apoiar captura e armazenamento de carbono, eletrificação dos processos e o uso de hidrogénio nas instalações.
Este tipo de projetos de reconversão ainda não são muito comuns em Portugal, mas o caso da refinaria de lítio da Galp parece, por agora, estar a apontar neste sentido.
§4.5. Finalmente, no setor energético, a situação está confusa e vai ficar cada vez mais confusa. A comunicação inicial da Comissão excluía expressamente apoios para atividades relacionadas com qualquer tipo de combustíveis fósseis e o desmantelamento ou construção das centrais nucleares.
Mas, entretanto, no início de Fevereiro de 2022 a Comissão Europeia alargou os critérios de financiamento verde para incluir nuclear e centrais a gás, apesar de objeções das ONGs, investidores, Estados Membros e a sua própria equipa de especialistas. Esta alteração da taxonomia pode afetar os critérios do Fundo, mas pode também não afetar.
O fim de fevereiro produziu uma realidade completamente diferente. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, o fornecimento de gás na Europa ficou apertado. Enquanto a União Europeia está a tentar encontrar alternativas imediatas, Alemanha já mencionou a possibilidade de travar os encerramentos das centrais nucleares e a carvão e ao mesmo tempo apostar nas terminais de gás natural liquefeito.
Por enquanto não sabemos o que vai acontecer ao financiamento verde europeu nos próximos tempos, mas existe uma possibilidade real de desvio dos fundos. Se acontecer e se impactar o Fundo para uma Transição Justa, então o Fundo (que já tem pouca a ver com a Justiça) deixa de ter algo a ver com a Transição. Nesse caso precisaríamos de encontrar um outro nome para ele.
*
§5. Próximos passos: A Portaria do governo do fim de novembro de 2021 antecipa os fundos para implementar medidas de transição justa.
Com “medidas” o governo entende (i) formação profissional, (ii) reconversão profissional, (iii) apoio à contratação dos trabalhadores afetados, e (iv) apoio ao empreendedorismo.
Os apoios serão dirigidos a (i) investimentos produtivos em PME e não PME que conduzam à diversificação, modernização e reconversão económicas, (ii) investimentos na implantação de tecnologias, e (iii) investimentos em energias renováveis.
Agora as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) vão preparar planos territoriais para as três regiões (Matosinhos, Pego e Sines) e, na base disto, os fundos serão alocados. Porém, como explicado acima, o dinheiro já foi antecipado e o governo já está a celebrar parcerias e as empresas estão a submeter projetos. De acordo com a lógica do mercado, o plano vai ser feito a posteriori, depois das empresas decidirem e executarem as suas decisões.
*
§6. O Fundo para uma Transição Justa por agora é mais uma ferramenta comunicativa nas mãos das empresas e do governo do que um plano. São comunicados após comunicados a divulgar novos projetos que prometem milhares e milhares de empregos.
Em muito em breve, o Fundo vai também tornar-se numa ferramenta administrativa para absorver o descontentamento dos trabalhadores em negociações eternas sobre o futuro deles depois do despedimento.
Neste sentido, é-nos equívoco se o Fundo para uma Transição Justa pode realmente servir como alavanca para construir uma sociedade justa e sustentável.
Por outro lado, esperar que a Comissão Europeia resolva crises é um método já testado na crise financeira de 2008 e mais uma vez na crise de pandemia de 2020. A sociedade civil, os trabalhadores e as comunidades locais precisam de construir os seus planos reivindicativos para uma transição justa.
*
§7. Neste artigo vamos limitar a nossa atenção às reivindicações diretamente ligadas à gestão e alocação de possíveis fundos para uma transição justa, sejam estes europeus ou nacionais.
O Fundo para uma Transição Justa da Comissão Europeia garante basicamente que uma empresa de combustíveis fósseis que levou o planeta à beira do abismo de caos climático seja compensada quando deixar de o destruir. Isto é uma abordagem de transição justa que ignora a justiça climática. Se um assassino em massa diz que quer deixar de matar pessoas, as duas coisas que a Comissão pretende fazer são dar dinheiro ao assassino e assistir as pessoas afetadas nos atentados. Isto é uma boa forma de construir desconfiança nos processos de transição.
Identificamos dois problemas estruturais que devem ser revertidos. Em primeiro lugar, os prazos dos encerramentos e os cortes de emissões estão a ser dirigidos por um realismo político que nega o realismo climático. Como abordado no início deste artigo, os planos de descarbonização e de neutralidade carbónica que apontam para 2050, na verdade, esgotam o orçamento de carbono já em 2030, se não antes. Neste momento é o mercado quem decide o que vai acontecer, quando vai acontecer e em que termos vai acontecer. (Com “o mercado”, queremos dizer os administradores das empresas multinacionais.) Ou seja, são os criminosos climáticos que mandam nas políticas climáticas. Revertendo isto e centrando o debate no planeta e nas pessoas, é essencial a criação duma comissão nacional de justiça climática com poder deliberativo, que exclui a indústria de combustíveis fósseis e privilegia a ciência e a sociedade civil.
Em segundo lugar, as políticas climáticas atuais protegem as empresas que causaram o problema. Como os casos concretos da refinaria de Matosinhos e da central de Sines mostraram, o Estado chega depois de todas as decisões serem tomadas pelas empresas e depois arranja fundos para os novos projetos propostos pelas mesmas empresas (o projeto de urbanização em Matosinhos e vários projetos de hidrogénio em Sines). Reverter isto significa criação de comissões de transição justa em cada território e em cada instalação que privilegiam os trabalhadores. No caso das instalações, o financiamento dum projeto deve depender do voto favorável do plenário dos trabalhadores.
Novos projetos apoiados pelos fundos não podem consolidar o poder das empresas de combustíveis fósseis no setor energético. Se uma razão para isso é construir justiça social e democracia energética, uma outra razão é ciência climática. Dois exemplos mostram isto com clareza: Se for a EDP, que detém as centrais a gás e as barragens, a controlar o hidrogénio, vai otimizar a sua produção para maximizar o seu lucro e não para diminuir o impacto climático. Se for a Galp, que tem a única refinaria em Portugal que produz gasolina e gasóleo, a controlar o processamento de lítio e os projetos de hidrogénio, então vai ser a Galp que vai controlar o setor de transportes e vai ajustá-lo na base do lucro. Em ambos casos, se for a mesma empresa privada que continua a atividade destrutiva que tem também acesso às alternativas, então a alternativa não servirá para uma transição, mas uma expansão organizada. Podemos observar esta hipótese empiricamente a nível mundial. Neste sentido, os fundos não podem reforçar esta dinâmica porque assim não geraram nenhuma transição. (É isso que estamos a observar na taxonomia europeia. Ver §4.5.)
*
§8. Reconhecemos que estas reivindicações devem ser traduzidas aos casos concretos e complementadas por reivindicações contextuais. O Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines pretende contribuir para este debate público com artigos separados que serão integrados numa síntese.
1 Há também mais duas ferramentas dentro do Pacto: a criação de um regime dentro do InvestEU dedicado à transição justa para atrair investimento privado (lê-se: parcerias público-privadas e outras formas de subsídios e incentivos às empresas privadas), e um outro mecanismo de empréstimo ao setor público apoiado pelo orçamento europeu. Estas duas ferramentas não interagem com transição justa e por isso vamos omiti-las neste artigo.
Pingback: O Hidrogénio vai salvar tudo? - Gás é Andar Para Trás