Em 2 de Julho de 2014, a Comissão Europeia aprovou a Iniciativa Emprego Verde: Explorar o potencial de criação de emprego da economia verde (Green Employment Initiative: Tapping into the job creation potential of the green economy)1, na qual traçava a estratégia de reconversão das economias do espaço da União Europeia à medida das necessidades de redução das emissões de gases de efeito de estufa e da reconversão do esquema de economia linear num modelo de economia circular2. Nas considerações iniciais deste documento pode ler-se que “O crescimento verde representa simultaneamente um desafio e uma oportunidade para o mercado de trabalho e as competências, que, por sua vez, constituem fatores decisivos da sua consecução. A transição resultará em transformações fundamentais em todo o espetro da economia e em inúmeros setores: serão criados postos de trabalho adicionais, alguns postos serão substituídos e outros redefinidos”.
A Europa começava então a recuperar da profunda crise económica e financeira desencadeada com a queda da Lehmann Brothers, em 2008. A Comunicação da Comissão enfatizava, ainda assim, que “Mesmo durante a crise económica, temos assistido à criação de uma quantidade apreciável de postos de trabalho no setor dos bens e serviços ambientais (EGSS), muitas vezes designados por «empregos verdes». O emprego na UE aumentou de 3 para 4,2 milhões entre 2002 e 2011, chegando a um aumento de 20% nos anos de recessão”, em muito se devendo às novas oportunidades geradas pela transição para uma economia hipocarbónica, à rentabilização sustentável de áreas protegidas e à viragem para um modelo de consumo circular. “Por exemplo, um aumento de 1% da taxa de crescimento do setor da água na Europa poderia criar entre 10.000 e 20.000 novos postos de trabalho. Estima-se que o turismo e as atividades recreativas nos sítios da rede Natura 2000 apoiem diretamente cerca de 8 milhões de postos de trabalho, correspondentes a 6 % do emprego total na UE. A implementação da legislação em vigor em matéria de prevenção e gestão de resíduos poderia criar mais de 400 000 novos postos de trabalho e a revisão da legislação nesta matéria agora proposta pela Comissão poderia criar cerca de 180.000 novos postos de trabalho , graças à abertura de novos mercados, de uma melhor utilização dos recursos, da reducção da dependência em relação às importações de matérias-primas e da redução das pressões sobre o ambiente”.
O esverdeamento da economia era apontado com uma alavanca fundamental de recuperação da crise, uma oportunidade de superação de uma fase crítica e simultaneamente um momento profundamente transformativo. “A transformação interna e a redefinição de postos de trabalho irão afetar setores com emissões elevadas (produção de energia, transportes, agricultura e construção, que são responsáveis por, respetivamente, 33%, 20%, 12% e 12% das emissões de gases com efeito de estufa na UE” — continuava a Comunicação. “O aumento do investimento no isolamento e na eficiência energética deverá traduzir-se positivamente na criação de emprego no setor da construção, onde mais de quatro milhões de trabalhadores terão necessidade de reconverter as suas competências. Devem ser também criados postos de trabalho nos setores da biomassa e dos biocombustíveis. Nos setores agrícola e florestal, foram recentemente introduzidas componentes ecológicas que melhoram a prestação de serviços públicos provenientes da agricultura e da silvicultura, garantindo ao mesmo tempo o crescimento verde nestes setores. Existem oportunidades para a criação de postos de trabalho no setor agrícola, em especial através da produção de qualidade, da agricultura biológica, da gestão da paisagem, do ecoturismo verde, dos serviços verdes (ambientais) e/ou de infraestruturas nas zonas rurais”.
Um Acordo de Paris assinado e em vigor desde 4 de Novembro de 2016; a emergência climática a ser declarada pelo Parlamento Europeu em Setembro de 2019 e um pouco por todo o mundo; um Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal) lançado pela Presidente da Comissão Ursula von der Leyen em 11 de Dezembro de 2019; e uma pandemia mais tarde, a estratégia gizada nesta Comunicação vê o seu alento renovado. A crise desencadeada pela pandemia, com efeitos profundamente disruptivos da actividade económica, pode ser a grande oportunidade para levar a cabo as mudanças já apontadas em 2014 e cada vez mais prementes.
Recorde-se que o Pacto Ecológico Europeu afirma que a transição para uma economia hipocarbónica que respeite os compromissos do Acordo de Paris — de contenção da subida da temperatura média do planeta até 2ºC, preferencialmente 1.5ºC, acima dos níveis pré-industriais até 2100 — se alavanca em dois eixos, os mesmos que a Comissão identificava em 2014: por um lado, a reconversão energética, com abandono progressivo dos combustíveis fósseis e substituição por fontes de energia renovável; e, por outro lado, a circularidade de produção e consumo. Por outras palavras, de uma banda, a reposição do equilíbrio climático, que induzirá a redução de periodicidade e intensidade de fenómenos extremos (furacões; ondas de calor; vagas de frio; inundações e incêndios), o retrocesso da subida do nível do mar, o reequilíbrio dos ecossistemas e a sobrevivência do ser humano; e, de outra banda, a travagem da degradação dos ecossistemas induzida pelo extrativismo de materiais e erradicação de espécies de fauna e flora. Enfim, é preciso reconverter os modos de fazer e de usar, através não só da criação de novos métodos como da transformação dos modelos existentes.
Portugal deverá estar alinhado com a estratégia europeia. Na sequência do Roteiro Nacional de Baixo Carbono 2020 (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 93/2010, de 26 de Novembro), o Governo aprovou o Quadro Estratégico para a Política Climática, do qual resultam várias sub-estratégias e compromissos, resumidos no Programa Nacional para as Alterações Climáticas, PNAC 2020/2030, e na Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas, ENAAC 2020 (Resolução do Conselho de Ministros 56/2015, de 30 de Julho). O PNAC aponta para a redução das emissões nacionais de gases com efeito de estufa em 18% a 23% em 2020, e em 30% a 40%, em 2030 (em relação a 2005) — valores entretanto ultrapassados pelas propostas do Pacto Ecológico Europeu, que fixa a meta numa redução de 55% (em face dos valores de 1990) até 2030, com vista a atingir a neutralidade carbónica em 2050. A Comissão já apresentou uma proposta de ‘Lei do Clima’ (COM(2020) 80 final , de 4 de Março — na verdade, um Regulamento), que tornará este objectivo plenamente vinculativo para a União e todos os Estados -membros. A aprovação deste instrumento constitui o grande desafio da Presidência Portuguesa, aprazada para Junho de 2021.
Antecipando esta aprovação, a Assembleia da República aprovou, a 7 de Janeiro de 2021, em votação na generalidade, os projectos de uma nova ‘Lei de Bases do Clima’, a ser construída com base em contributos de vários partidos3. Assumindo que a proposta da Comissão fará vencimento, a meta de 55% — ou superior — tornar-se-á vinculativa e o cumprimento desse objectivo injectará um considerável grau de exigência transformativa na economia portuguesa. Diga-se, no entanto, que algum caminho já vem sendo percorrido, desde a década de 1990, numa das dimensões mais relevantes: a produção de energia eléctrica. Através de um quadro regulatório generoso, Portugal incentivou a implantação de um conjunto significativo de parques eólicos. A travagem dos apoios provocou uma retracção no sector mas mais recentemente, com o embaratecimento dos painéis fotovoltaicos, a tecnologia solar começou também a ganhar expressão, sobretudo na zona sul do país. O último grito é o hidrogénio, que o Governo pretende que seja uma aposta forte, com um investimento projectado de 7000 milhões de euros divididos por uma mega central, a instalar em Sines, e diversos postos mais pequenos de produção localizada e de abastecimento, para o transporte rodoviário eléctrico, e de veículos alimentados por células de combustível a hidrogénio (Resolução do Conselho de Ministros 63/2020, de 14 de Agosto, que aprova o Plano Nacional do Hidrogénio).
A electrificação verde da economia é um terreno fértil para a criação de emprego. Se actualmente o nível de consumo de energia renovável é de cerca de 60%, em 2030 será de 80%, prevê o Ministro do Ambiente e da Acção Climática4. Esta meta implica que Portugal produza nove vezes mais energia solar e duplique a capacidade de produção de energia eólica, segundo a estimativa do Presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis, Pedro Amaral Jorge5. A Consultora Delloite estima que o sector das renováveis representará, em 2030, 4.5% do PIB/11.000 milhões de euros, crescimento que se fundará num investimento forte no emprego ligado à produção e manutenção de equipamentos de geração, ao sector da eficiência energética, à construção de veiculos eléctricos e seus componentes, triplicando os actuais postos de trabalho (de 50 mil para cerca de 160 mil)6. Este investimento será, em grande parte, financiado por “obrigações verdes” (green bonds) emitidos pela União Europeia indexados ao pacote de recuperação da pandemia, conforme anunciou Ursula von der Leyen no Discurso do Estado da União, em Setembro de 2020 — trata-se de um valor de cerca de 225 milhões de euros, ou seja, 30% do valor do programa de recuperação para a economia comunitária, que totaliza 750 mil milhões de euros.
Na frente da Economia Circular, o quadro é menos animador. Na senda do Plano de Acção da UE para a Economia Circular “Fechar o ciclo” (COM(2015)614 final, de 2 de Dezembro) — renovado em Março de 2020 (Um novo Plano de Acção para Economia Circular – Para uma Europa mais limpa e competitiva: COM (2020) 98 final, de 11 de Março) —, Portugal adoptou o Plano de Acção para a Economia Circular em Portugal (Resolução do Conselho de Ministros 190-A/2017, de 23 de Novembro), mas as mudanças nesse domínio são mais radicais. A economia circular implica um esforço transformativo brutal tanto no plano da produção como no do consumo, exigindo um maciço investimento na tecnologia e na educação. Trata-se de repensar o conceito de resíduo, adoptando o modelo da Natureza, na qual nada se perde e tudo se transforma. A economia circular força uma retracção do consumo compulsivo de que o capitalismo se alimenta, pois visa prolongar a vida do produto, promovendo a reutilização, a reparação, a remanufacturação, enfim, a sua existência, no todo ou em parte, na versão original ou repensada, preferencialmente ad eternum. A avaliar pelo atraso que levamos nas metas de reciclagem, esta revolução, mental e técnica, vai ser mais tardia. Mas uma vez em marcha, o potencial de investigação científica e reconversão técnica será certamente gerador de emprego muito qualificado.
Outros sectores propícios ao crescimento de empregos verde são a agricultura — com a recuperação da periferia das cidades numa tentativa de promover o consumo de proximidade, bem como através do aproveitamento de espaços e equipamentos dentro da cidade —, a silvicultura — variando espécies e plantando florestas mais resilientes —, a jardinagem — alterando as espécies cultivadas em ambiente urbano para combater as ondas de calor —, a arquitectura — criando edifícios mais eficientes e resilientes às alterações climáticas… É verdade que os novos empregos não serão apenas para trabalhadores recém-chegados mas também para operadores que já estão no mercado de trabalho e se verão forçados a reajustar as suas competências ou, eventualmente, a recomeçar do zero. Naturalmente que estes processos poderão ser violentos para alguns, e necessitarão de acompanhamento e comunicação adequados. Mas devem ser encarados como inevitáveis, uma vez que é a sobrevivência da Humanidade que está em causa.
Num Relatório de 2018, a Organização Mundial do Trabalho (OMT) acentua, precisamente, o diálogo social como metodologia para fazer da transição laboral verde uma transição justa7. A OMT realça ainda quatro áreas de políticas publicas que reflectem particulares sinergias entre a protecção social e a sustentabilidade: a protecção no emprego, subsídios, programas de emprego público e pagamento por serviços ambientais. Uma transformação tão profunda não se faz sem um forte apoio público, sobretudo nos domínios menos apetecíveis para a iniciativa privada. Bem geridos, os apoios aos empregos verdes podem ser igualmente fulcrais para combater a desertificação do interior, uma vez que sectores com a agricultura, a silvicultura e mesmo as novas indústrias terão no interior um espaço privilegiado.
Por ocasião do anúncio do plano de recuperação da economia americana, numa tentativa de superação dos efeitos dramáticos da pandemia e de abandono da atitude negacionista de Donald Trump face às alterações climáticas, Joe Biden adoptou um mantra: o emprego. A palavra “jobs” foi repetida 15 vezes no seu discurso, acentuando a importância da transição para uma economia hipocarbónica através da criação de empregos verdes — só na indústria automóvel, a previsão é de criação de 1000 novos postos de trabalho na indústria de veículos eléctricos. “Today is climate day in the White House which means today is jobs day at the White House,” afirmou Biden. A retoma económica será verde e o panorama laboral será totalmente retocado por essa onda de mudança.
No Império do Meio, a China, a expressão “ocupação verde” surgiu no “Dicionário de Ocupações na China” em 2015 como “selo” de 17 categorias de profissões com características “ambientalmente amigas, hipocarbónicas e circulares”. Não admira, uma vez que a estratégia “2006/2015 Empregos Verdes na China” lançou as bases de uma transformação profunda no sector das energias renováveis. Em 2019, 39% dos empregos na produção de energias renováveis (fabrico de componentes e trabalho em centrais geradoras) encontrava-se na China, traduzindo-se em 4.1 milhões de trabalhadores divididos pelos sectores das energias hídrica, solar, e biomassa. O fabrico de veículos eléctricos, em 2010 alvo de uma decisão governamental que o identificou como uma das sete indústrias estratégicas emergentes, foi estimado pela OMT como potencialmente gerador de cerca de 1.2 milhões de novos empregos em 2020 (em indústrias de automóveis e de baterias) 8.
É inquestionável que a luta contra as alterações climáticas propulsionará uma transformação sócio-económica profunda, um pouco por todo o mundo, e que uma das lições da pandemia será promover essa adaptação com carácter de urgência. Trata-se de um imperativo moral, político e económico: fazer renascer das cinzas da crise pandémica uma sociedade mais ecologicamente comprometida, com um estilo de vida mais sustentável. 2021 e os seguintes deverão ser “jobs years” — anos de empregos verdes, para cumprir Paris e a tarefa histórica de inverter a tragédia climática.
Carla Amado Gomes
Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Investigadora Efectiva do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP)
Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto)
1 Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions “Green employment initiative: Tapping into the job creation potential of the green economy”, COM(2014)446 final, de 2 de Julho.
2 As repercussões institucionais desta Comunicação estão sumariadas na Resolução do Parlamento Europeu de 8 de Julho de 2015 sobre a Iniciativa Emprego Verde: Explorar o potencial de criação de emprego da economia verde (P8_TA(2015)0264).
3 Os projectos podem ser consultados aqui: https://www.parlamento.pt/sites/COM/XIVLeg/11CAEOT/Paginas/IniciativasEmComissao.aspx
4 Fonte: Observador, “80% da eletricidade de Portugal será de fontes renováveis em 2030, diz ministro do Ambiente”, de 28 de Setembro de 2020 — https://observador.pt/2020/09/28/80-da-eletricidade-de-portugal-sera-de-fontes-renovaveis-em-2030-diz-ministro-do-ambiente/
5 Fonte: Visão, “A década da revolução verde”, no Caderno Mensal Visão Verde, de 14 de Janeiro de 2021.
6 Fonte: Dinheiro Vivo, “Hidrogénio Verde e renováveis vão criar 160 mil novos empregos até 2030”, de 6 de Outubro de 2020 —https://www.dinheirovivo.pt/economia/hidrogenio-verde-e-renovaveis-vao-criar-160-mil-novos-empregos-ate-2030-12884191.html
7 Greening with jobs, World Employment Social Outlook 2018 — disponível aqui http://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/greening-with-jobs/WCMS_628708/lang–en/index.htm
8 Cfr. Annete WIEDENBACH, China Leads Green Jobs in Renewable Energy Sector, 26 de Setembro de 2020 — disponível aqui: https://www.climatescorecard.org/2020/09/china-leads-green-jobs-in-renewable-energy-sector/