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Todos os caminhos da neutralidade carbónica passam pela floresta – Luís Fazendeiro

Os últimos anos têm visto o termo “neutralidade carbónica” tornar-se parte da linguagem comum. Sendo uma das bandeiras da Greve Climática Estudantil, inspirada por Greta Thunberg, e de vários movimentos que lutam pela justiça climática, esta exigência começa a ganhar mais espaço, tanto em termos de atenção mediática como até da agenda de vários partidos políticos, em cada vez mais países. No começo de 2021 existem agora dezenas de nações que anunciaram esse objetivo, entre 2050 (incluindo a União Europeia, Reino Unido, Nova Zelândia e, mais recentemente, Japão e Coreia do Sul) e 2060 (China), sendo de prever que a nova administração Biden-Harris nos EUA anuncie em breve algo de semelhante.

No entanto todos sabemos que de boas intenções está o Inferno cheio e nos dias que correm até as grandes petrolíferas, como a Shell ou a BP vêm anunciar o seu compromisso de “neutralidade carbónica” para 2050.1 Quando empresas multinacionais cujo principal negócio é desenterrar combustíveis fósseis do solo e queimá-los anunciam querer ser “carbon neutral” é caso para perguntar se o conceito ainda terá qualquer tipo de validade…

1. O que (não) é a neutralidade carbónica?

Neutralidade carbónica significa que as emissões de Gases causadores de Efeito de Estufa (GEE) são exatamente iguais às remoções por sorvedouros de carbono localizados no país ou território em causa, sejam estes florestas, prados, oceanos ou zonas húmidas – como pântanos e mangais. Em princípio nada poderia ser mais simples, mas o problema rapidamente surge quando se começa a tentar contabilizar emissões e remoções.

A menos que esta contabilização siga os mais rigorosos critérios científicos, com um grau de independência acima de qualquer suspeita, o conceito pode ser facilmente subvertido e tornar-se irrelevante – ou mesmo prejudicial, como tem sucedido nas últimas décadas. A forma mais comum de isso acontecer é através do “greenwashing” das grandes empresas, que afirmam fazer a compensação das suas emissões através do financiamento de projetos supostamente sustentáveis e sorvedores de carbono, noutras partes do globo. Por exemplo, o comprador de um bilhete de avião pode em muitos casos pagar uma dada quantia para que árvores sejam plantadas em África, Ásia ou América do Sul, que irão (assim reza a publicidade) absorver ao longo da sua vida quantidades de carbono equivalentes às que o passageiro emitiu ao longo da viagem. E qual é o problema com isto? Na verdade, são vários! Em boa parte dos casos, o dinheiro da suposta “compensação” nunca chega ao seu lugar de origem, devido quer a mecanismos de corrupção quer à enorme carga burocrática de todo o processo. Ou o dinheiro chega de facto ao local de destinado e as árvores são plantadas, mas morrem rapidamente, pois foram plantadas em terreno inóspito, em solos inférteis ou sem água. Ou vemos comunidades indígenas a serem violentamente expulsas das suas terras ancestrais para que ocidentais ricos possam aí plantar as suas “árvores da culpa”, potenciando mais desigualdades sócio-económicas e conflito regional. Ou as árvores são de facto plantadas numa zona apropriada e sobrevivem, mas cedo são cortadas, de modo a produzir mais-valia económica de curto prazo, sendo que o resultado líquido de todo o processo acaba por emitir mais carbono do que absorver. Ou, finalmente e no melhor dos casos, as árvores têm de viver várias dezenas de anos até absorver todo o carbono que foi emitido (por passageiro) nas poucas horas de duração do vôo. Resultado: as emissões de GEE são imediatas e vão ficar na atmosfera durante décadas ou mesmo séculos (no caso do dióxido de carbono). Já os projetos de compensação, podem ou não chegar a ver a luz do dia, e dificilmente chegarão a absorver uma quantidade de carbono equivalente à emitida.2

Se pensarmos agora em termos nacionais, o problema da neutralidade carbónica revela novas dimensões. Um país pode perfeitamente ver as suas emissões de GEE a diminuir anos após ano e ao mesmo tempo ter uma maior pegada ecológica, em termos globais. Basta para isso exportar cada vez mais atividades poluentes para outros países ou continentes. Ou importar produtos cuja pegada de carbono é maior durante os processos de extração, transformação e transporte do que durante o consumo final (como é o caso do gás “natural” liquefeito – GNL3). De facto, esse tem sido em grande parte o caso da União Europeia, cujas emissões domésticas de GEE têm vindo a diminuir cerca de 1% ao ano nas últimas décadas, mas com a sua pegada carbónica global a aumentar.4

2. Quando deveria esta ser atingida?

Há várias formas de responder a esta pergunta. A principal de todas é: o mais rapidamente possível! Isto porque o aumento antropogénico das emissões de GEE lançou já o clima terrestre numa direção diferente da que gozara desde o fim da última Idade do Gelo há cerca de 11 mil anos (o chamado “Haloceno”). De acordo com o climatólogo James Hansen, o valor de concentração de CO2 na atmosfera que seria compatível com a civilização tal como a conhecemos seria de 350ppm (partes por milhão). Antes da era industrial esta era de 280ppm, atualmente está já muito próximo das 420ppm, um aumento de cerca de 50%, e a aumentar a um ritmo de quase 3ppm por ano. A queima de combustíveis fósseis e a desflorestação causou já um aumento da temperatura global média de 1ºC-1.2ºC. De acordo com o IPCC, a neutralidade carbónica a nível mundial deveria ser atingida no começo da década de 2040, de modo a termos boas probabilidades de não ultrapassar os 1.5ºC de aumento, em relação ao nível pré-industrial.5 Isso significa que os países mais ricos têm a responsabilidade moral, devido ao seu maior contributo para a crise climática, de atingir a neutralidade antes e de ajudar os países mais pobres a adaptar-se aos efeitos do aquecimento global e a desenvolver-se de forma mais sustentável. E é aí que surge a meta de 2030.

3. Pode Portugal ser neutro em carbono em 2030?

As atuais metas, quer de Portugal quer da União Europeia não são de modo algum compatíveis com o limitar do aquecimento global a 1.5ºC. Quando muito são compatíveis com o limite dos 2ºC – mas só se excluirmos a sua responsabilidade histórica e assumirmos que todos os países têm exatamente as mesmas capacidades de mitigação e adaptação, o que é ridículo.6 A juntar a isto existe ainda a inconsistência de Portugal estar a usar um ano base diferente (2005) do da EU (1990) para medir os seus cortes nas emissões de GEE.7

Segundo a APA8 as emissões de GEE em 2005 foram de 86 MtCO2eq (tabela 2.1, pág. 51). As metas atuais do Governo prevêm reduções nas emissões de GEE de 85 a 90%, face a 2005. Isto significa emissões de 9-13 MtCO2eq em 2050. Significa também que é esse o valor que o Governo prevê para os sumidouros de carbono em 2050. Mas este objetivo pode e deve ser antecipado por 20 anos!9 Em particular, é imperioso que haja um maior foco na parte dos sorvedouros, com destaque para a floresta. Esta é uma das áreas que menos atenção tem tido e onde se notam algumas das discrepâncias mais graves a nível de políticas públicas.

O Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050)10 projeta um sequestro de carbono por parte das florestas da ordem de 12-13 MtCO2eq em 2050. Mas é curioso verificar que esse valor já foi atingido durante os anos de 2007-2011 (Figura 1, em baixo), com um valor recorde de cerca de 13.65 MtCO2eq em 2008. Quais são então os pressupostos por trás da projeção do RNC2050? Em primeiro lugar, descobrimos que se considera a possibilidade de a área ocupada por eucalipto ser sensivelmente a mesma em 2050 do que era em 2015.11 Depois, vemos ainda que se considera uma média de área ardida de 70 mil hectares (ha) por ano em 2050. Manifestamente menos do que a média anual do período entre 1998-2017 (164 mil ha/ano), mas ainda assim bastante elevada. Como resultado, espera-se que a área florestal em 2050 seja menor do que em 2015 (num máximo de 4.31 milhões ha, contra 4.36 em 2015). Várias outras estatísticas se poderiam acrescentar aqui, mas o ponto principal é o seguinte: o RNC2050 não prevê qualquer tipo de transformação sistémica para a floresta portuguesa. Se consultarmos a ficha técnica do RNC2050 descobrimos por fim que a secção das florestas foi levada a cabo por uma empresa de consultadoria… que conta entre os seus principais clientes a Navigator Company.

Figura 1. A partir dos dados da APA, NIR, 2020, tabela 2.1. A amarelo está o volume dos sumidouros de carbono (LULUCF = Land Use, Land Use Change and Forestry). Um valor maior que zero implica uma contribuição líquida positiva para as emissões de GEE, como foi o caso em 2003, 2005 e 2017, anos dos maiores incêndios. Entre 2007 e 2011, o volume de GEE absorvido por esse sector ultrapassou consistentemente as 10 MtCO2eq.

Notas finais

Sobre aquilo que deveria ser uma verdadeira estratégia para a floresta portuguesa pode ler-se o excelente artigo do engenheiro Paulo Pimenta de Castro.12 Aqui referimos apenas alguns pontos principais, em jeito de conclusão:

– A meta de sequestro de carbono para as florestas portuguesas tem de ser elevada para 20-25MtCO2eq por ano em 2030. Isto implica uma transformação do paradigma atual de monoculturas industriais para um de florestas mais diversas e mais resilientes, com base em espécies autóctones, bem como um processo massivo de reflorestação e a-florestação, em boa parte do território onde tal seja viável;

– Na versão do relatório de 2017 da campanha Empregos para o Clima, descreveu-se como se poderiam reduzir as emissões de GEE em Portugal de 45MtCO2eq num prazo de 10 anos. Partindo de um valor de 67MtCO2eq em 2018 (APA, NIR, 2020), ter-se-iam assim emissões de 22MtCO2eq em 2030. Esse valor pode ser capturado pelas florestas, caso haja um programa transformacional durante esta década, e que inclua o fim do flagelo dos mega-incêndios.13

– A transformação do sector florestal português teria ainda toda uma série de outros efeitos benéficos, incluindo o aumento da resiliência do país às alterações climáticas, através de espécies autóctones mais resistentes aos incêndios florestais (algo de endémico em climas de tipo mediterrânico, como é o nosso), contribuindo para travar a desertificação dos solos e para aprisionar mais humidade nos solos. Isto além de criar milhares de novos empregos nas zonas rurais, onde a falta de emprego e a migração forçada são um fator de profunda degradação económico-social.

– Em termos educacionais, campanhas de reflorestação massiva, reintrodução de espécies animais e vegetais e de mudança nas práticas agrícolas (e alimentares) poderiam ter um dos impactos mais significativos na mudança de mentalidades e no aproximar as pessoas do mundo natural e da importância de conservá-lo, melhorando inclusive o nível geral de saúde, física e mental, da população.

Não existe nenhum caminho de sustentabilidade e justiça social em Portugal que não passe pela transformação profunda das nossas florestas. E o mesmo é verdade para a meta da neutralidade carbónica.


Luís Fazendeiro é investigador na Universidade Nova de Lisboa. A sua pesquisa centra-se na modelação de sistemas energéticos, com ênfase numa rápida transição para energia renovável, no contexto das políticas públicas nacionais e europeias, bem como o papel que as dinâmicas sociais podem desempenhar nesta transição e a forma como estas podem ser incluídas em modelos de energia-ambiente-economia.


2 Heather Rodgers, Green Gone Wong – How our economy is undermining the Environmental Revolution, Simon and Schuster, 2010.

3 https://gasparatras.pt/2020/01/15/expansao-do-terminal-de-gnl-de-sines-agrava-a-crise-climatica-e-mascara-as-emissoes-portuguesas/

4 Por exemplo, um estudo recente estima quedas de 13% nas emissões domésticas de GEE da EU entre 1990-2010, mas um aumento de 8% na sua pegada carbónica global, no mesmo período. Relatório “Decoupling Debunked”, T. Parrique et al., 2019, pág. 27. URL: eeb.org/decoupling-debunked.

5 “Global Warming of 1.5ºC”, Special Report, IPCC, 2018, https://www.ipcc.ch/sr15/

6 Aqui estamos a basear-nos nos dados do Programa Ambiental das Nações Unidas e a conclusão de que é preciso reduzir as emissões em 55% (25%) em 2030, face a 2018, para não ultrapassar 1.5ºC (2ºC). United Nations Environment Programme (2019). Emissions Gap Report 2019. UNEP, Nairobi.

7 https://www.climaximo.pt/2019/08/04/2020-vai-ser-o-ano-do-movimento-pela-justica-climatica-luis-fazendeiro/

8 National Inventory Report on Greenhouse Gases, APA, Amadora, March, 15th, 2020. URL: https://apambiente.pt/_zdata/Inventario/20200318/NIR_FINAL.pdf

9 http://empregos-clima.climaximo.pt/aspirando-a-neutralidade-carbonica-ate-2030-em-portugal/

10 “RNC2050 – Estratégia de longo prazo para a neutralidade carbónica da economia portuguesa em 2050”, em particular a seção 4.2.

11 RNC2050, pág. 56; 0.85 milhões de hectares em 2015, versus uma gama de 0.67 a 0.83 em 2050.

12 http://empregos-clima.climaximo.pt/florestas-mais-emissoes-ou-mais-emprego-paulo-pimenta-de-castro/

13 João Camargo e Paulo Pimenta de Castro, Portugal em Chamas – Como resgatar as florestas, Editora Bertrand, 2018.

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