A campanha Empregos para o Clima traduziu o sumário executivo do Relatório da Federação Europeia de Sindicatos da Função Pública (EPSU) – Viragem para o domínio público: Um sistema energético descarbonizado, acessível e democrático para a Europa. O falhanço da liberalização energética (com título oficial Going Public: A Decarbonised, Affordable and Democratic Energy System for Europe. The failure of energy liberalisation).
Este relatório foi lançado em 2019, mas os seus resultados são ainda, ou até mais, relevantes no momento atual, em que múltiplas crises sistémicas se acumulam, e ameaçam o acesso de milhares de pessoas por toda a Europa, a serviços e bens essenciais.
A energia é um destes bens essenciais. Em Portugal, em 2020, segundo a Eurostat, cerca de 19% dos portugueses estava já em situação de pobreza energética. Neste momento, com as contas da eletricidade e gás a dispararem, acompanhadas por aumentos de preços generalizados, estes valores certamente se agravaram.
O relatório apresenta dados importantes e faz uma análise dos impactos de duas décadas de liberalização no setor energético nos postos de trabalho neste setor, nos preços da energia ao consumidor e nos investimentos na transição energética. O relatório nota que sem uma rejeição do atual modelo em que se baseia o sistema energético na Europa, estamos condenados a falhar os compromissos feitos no Acordo de Paris, em 2015. Neste sentido, os autores acabam apontando a importância da propriedade pública para um sistema energético justo e sustentável.
Em Portugal aponta para níveis particularmente altos e preocupantes de pobreza energética, sendo Portugal um caso de destaque no que diz respeito à propriedade no sistema de transmissão de energia. Portugal e o Reino Unido eram em 2019, na EU ainda a 27, os únicos dois países onde a rede de transmissão era já 100% privatizada. Isto é contrastante com a situação de mais de metade dos países da Europa, onde as redes de transmissão eram 100% públicas. Em Portugal, a empresa responsável pela rede de transmissão de energia é a REN, que foi privatizada em 2011, por imposição da Comissão Europeia e do Fundo Monetário Internacional.
Abaixo encontra-se a nossa tradução do sumário executivo do relatório. Convidamos todas as interessadas a lerem o relatório completo aqui: https://www.epsu.org/article/going-public-decarbonised-affordable-and-democratic-energy-system-europe-new-epsu-report
Sumário Executivo
A necessidade urgente de políticas energéticas alternativas
A descarbonização do sistema energético da Europa é fundamental para enfrentar urgentemente a emergência climática, mas as políticas energéticas atuais estão a falhar. São necessárias transformações radicais para manter o aumento da temperatura global abaixo dos dois graus Celsius acima dos níveis pré-industriais estabelecidos no Acordo de Paris de 2015. Precisamos de
repensar como resolver o ‘trilema’ energético e garantir um fornecimento contínuo de energia segura e descarbonizada, que seja acessível para todos. O setor energético deve ter um controlo democrático e deve oferecer empregos de qualidade para todos os que nele trabalham.
A liberalização do setor energético falhou-nos
O objetivo da liberalização da energia era introduzir concorrência e eliminar os monopólios de mercado. A Comissão Europeia previu que a abertura do mercado da energia teria um impacto significativo sobre as produtividades nacionais e levaria a reduções de preços. No entanto, a investigação académica baseada em dados empíricos mostra que a liberalização energética não conseguiu alcançar os seus objetivos.
Mesmo quando o sucesso limitado da liberalização energética é reconhecido, a culpa é atribuída à regulamentação e distorção do mercado, em particular aos subsídios para as energias renováveis. A culpa é apontada à interferência nos mercados livres, e não aos problemas intrínsecos da liberalização.
Em vez de acabar com os monopólios de empresas anteriormente públicas, a liberalização da energia levou a uma maior concentração da propriedade. Em meados dos anos 2000, muitas das empresas europeias de menor dimensão geradoras e retalhistas já tinham sido adquiridas por grandes empresas pan-europeias. No final dos anos 2000, as chamadas Cinco Grandes empresas energéticas dominavam o mercado.
Afirma-se frequentemente que o sucesso da União Europeia (UE) na utilização de energias renováveis é um produto da privatização e das políticas de liberalização, tendo a liberalização criado o cenário regulamentar em que novos atores, como empresas eólicas e solares, puderam prosperar. No entanto, foi o contrário que aconteceu. O uso de renováveis só foi possível porque a UE permitiu que as energias renováveis fossem isentas das regras dos auxílios estatais e implementadas através de acordos comerciais fora do mercado. Os subsídios têm facilitado um aumento da electricidade produzida através de fontes renováveis, no entanto, esta proteção das energias renováveis contradiz as políticas de liberalização energética da UE. As energias renováveis não se ajustam à estrutura de mercado existente, o que levou a um colapso dos preços da electricidade no mercado grossista. A Comissão Europeia está agora a avançar no sentido de reduzir a protecção para as energias renováveis.
Em vez das diminuições previstas nos preços da eletricidade e do gás, em resultado da liberalização da energia e sua privatização, aconteceu o oposto, e os preços de venda ao consumidor aumentaram. A pobreza energética duplicou em toda a Europa ao longo de um período de 10 anos. Em 2014, as famílias com rendimentos mais baixos na UE gastaram perto de nove por cento das suas despesas totais em energia. A pobreza energética é um problema particular na Europa Oriental, onde os rendimentos são mais baixos, e na Europa do Sul, especialmente em países duramente atingidos por
políticas de austeridade.
A liberalização da energia não está a conduzir à criação de empregos de qualidade
A liberalização do setor energético está associada à perda de postos de trabalho. Em termos relativos, entre um terço e um quarto dos postos de trabalho no setor elétrico foram perdidos entre 1995 e 2004 na UE-15.1 No Reino Unido, país pioneiro em liberalização e privatização energética, cerca de 60% dos postos de trabalho foram perdidos entre o início dos anos 90 e 2001. A liberalização da energia não só levou à perda de postos de trabalho, como também alterou a natureza do trabalho, com um declínio geral nos trabalhos técnicos e de manutenção, muitas vezes associado e exacerbado pela externalização. Entretanto, o número de postos de trabalho na parte jurídica, de marketing e de vendas aumentou, visto uma prioridade para empresas num mercado liberalizado ser conquistar clientes.
A fragmentação da produção de energia, juntamente com a externalização, fragilizou o poder de negociação dos sindicatos e os direitos dos trabalhadores. A Transição Justa promovida pelos sindicatos coloca os trabalhadores e o emprego no centro das políticas climáticas. Reconhece que a transição para uma economia de baixo carbono tem implicações de grande alcance e de transformação industrial que irão afetar trabalhadores e comunidades. Uma Transição Justa significa que em comunidades que atualmente dependem de combustíveis fósseis têm de ser desenvolvidas atividades económicas alternativas e que os trabalhadores têm de ser formados para desenvolver competências para os novos empregos.
O pacote Clean Energy for all Europeans, recentemente adotado pela Comissão Europeia refere que conduzirá à criação de 900.000 novos empregos. No entanto, estas alegações baseiam-se principalmente em dados estatísticos, e modelos onde a criação de empregos é calculada através de correlação direta com os níveis de investimento. Segundo estes modelos, os empregos serão criados onde quer que o dinheiro seja investido, e de qualquer maneira. Isto deixa por responder questões importantes sobre se os investimentos em causa são a melhor utilização para capital disponível limitado, sobre o tipo de empregos criados e sobre onde são criados.
A liberalização da energia está em desacordo com a descarbonização
As Cinco Grandes empresas de energia têm tido um mau desempenho em termos de produção de energia renovável, o que é alarmante, tendo em conta a emergência climática. A investigação sugere que a liberalização da energia representa uma limitação substancial à transição para um sistema de baixo carbono. Uma onda de re-municipalização, principalmente na Alemanha, levantou questões-chave sobre até que ponto a propriedade privada é compatível com a transição para uma economia de baixo carbono. Destacou também a crescente relevância da propriedade pública de energia, modelos de propriedade e do controlo democrático dos recursos energéticos.
A liberalização energética é incompatível com as políticas que promovem e subsidiam as energias renováveis e a descarbonização do sector energético. Sem subsídios, as energias renováveis não podem sobreviver nos mercados competitivos de eletricidade. Por outras palavras, o aumento das energias renováveis só foi possível porque foi protegido da liberalização do mercado e não por causa da liberalização do mercado. No entanto, como resultado dos subsídios para as energias renováveis, os preços grossistas de energia têm vindo a diminuir, e têm conduzido ao que são na sua essência falhas no mercado. Isto mostra que a lógica do mercado não pode acomodar com sucesso as energias renováveis.
A importância da propriedade pública para um sistema energético justo e sustentável
O sector privado pode ser incentivado e subsidiado para incentivar o investimento em energias renováveis e uma transição justa. No entanto, as instituições públicas estão muito melhor posicionadas para dar respostas à urgência das alterações climáticas, protegendo ao mesmo tempo os trabalhadores.
Um sistema energético de propriedade pública restabelece e expande a capacidade de controlo democrático e planeamento público num setor que fornece um “bem público” vital.
Existem diferentes formas de propriedade pública. Não significa necessariamente voltar ao modelo de grandes empresas, centralizadas, de propriedade nacional. A propriedade pública pode ser descentralizada a níveis municipais e locais, o que traz oportunidades para um maior controlo democrático sobre setores-chave.
Em toda a UE há um impulso no sentido da participação local nos sistemas energéticos através de propriedade municipal e comunitária. Contudo, enquanto a descentralização pode criar um espaço inicial para cooperativas comunitárias e/ou operárias geridas pela comunidade, comporta também o risco de um maior envolvimento do sector privado. Existe também o perigo de as cooperativas se transformarem em comunidades fechadas de energia, onde cidadãos mais abastados geram e fornecem
a sua própria eletricidade para a sua vizinhança, deixando as comunidades mais pobres excluídas.
Independentemente da forma que assuma a propriedade pública, o princípio do acesso universal deve ser consagrado. A descentralização deve reforçar, em vez de enfraquecer, as infraestruturas públicas regionais e nacionais.