Nota inicial: Neste texto recupero e complemento o fio argumentativo desenvolvido no artigo “Sindicalismo e atores sociolaborais em contexto de austeridade: do voluntarismo dos protestos ao receio das alianças”, Análise Social, 224, lii (3.º), 2017, 662-688.
O sindicalismo foi constituído na base de ambições emancipatórias, internacionalistas e de homogeneização. Ao longo de muitas décadas, tais ambições envolveram uma intensa dedicação e sacrifício em prol de uma conceção de trabalho enquanto direito humano. E todas elas, porém, continuam a fazer sentido, mormente em tempos de adversidade económica e social como os vividos na “era da austeridade” (em especial na periferia da zona Euro entre 2011-2015) e, no presente, com a pandemia mundial. Àquelas três ambições fará sentido adicionar uma quarta, ainda que historicamente não tenha sido prioritária na agenda sindical: refiro-me a um sindicalismo predisposto a construir alianças sociais com outras organizações e movimentos não sindicais em torno de preocupações/temáticas a partir das quais se possam gerar convergências e sinergias.
Na comunidade académica internacional, em especial devido aos contributos de Peter Waterman, Gay Seidman, Rob Lambert, Eddy Webster, Kim Moody, entre outros, essa ideia de um sindicalismo “aberto ao exterior” recebeu as designações de “sindicalismo de movimento social” ou de “novo sindicalismo social”. Esse(s) conceito(s) serviu de “porto de abrigo” à abertura do sindicalismo a organizações e temas não sindicais, projetando os interesses do mundo do trabalho segundo critérios de cidadania que se expandem para lá de um registo meramente conotado um mercado formal de trabalho. Como afirmava Boaventura de Sousa Santos há mais de um quarto de século, trata-se de apelar ao sindicalismo que se articule com movimentos sociais progressistas, movimentos de consumidores, ecológicos, antiracistas, feministas, etc.
Testemunhos dessas articulações foram evidentes nas experiências de industrialização tardia ocorridas no Brasil e na África do Sul no final dos anos 70, início dos anos 80 do século XX. No Brasil, as lutas operárias e populares apontaram quer no sentido de uma democratização da atividade sindical, quer de uma democratização generalizada da sociedade brasileira. Nesse sentido, a criação de um “campo democrático popular” (como lhe chamou Roberto Véras) permitia articular a intervenção operária conduzida a partir das fábricas (em especial na região do ABC paulista) com as aspirações populares e comunitárias, em nome de um discurso de classe amplo. De igual modo, também na África do Sul o “sindicalismo de movimento social” se constitui num importante contributo para as teorias e práticas associadas ao processo de transição e consolidação democrática, ajudando a clarificar diferenças e semelhanças entre sindicatos e movimentos sociais.
À escala europeia, um exemplo de efeitos potenciadores no domínio ambiental foi a “Iniciativa europeia de cidadãos sobre a água como direito humano”. Tratou-se de uma ampla aliança de grupos de cidadãos e representantes sindicais dos serviços públicos (com destaque para a Federação Europeia de Sindicatos dos Serviços Públicos) que mobilizou milhões de assinaturas. Tal iniciativa organizou-se em torno de três exigências principais: i) a necessidade de reconhecimento, por parte da União Europeia, do direito humano à água e ao saneamento e sua consagração na legislação comunitária; ii) a não liberalização dos serviços de água na União Europeia; iii) a garantia do acesso à água e ao saneamento para todos em todo o mundo. Reuniam-se, assim, preocupações sindicais e de grupos de cidadãos. Por um lado, organizações sindicais procurando manter o fornecimento de água em mãos públicas, na linha do que sucede com as condições de trabalho, geralmente melhores no setor público do que no setor privado. Por outro lado, grupos de cidadãos pugnando pelo acesso universal a água potável a preços acessíveis. A inclusão de questões além do local de trabalho, como o direito de acesso à água potável, permitiu aos sindicatos conectarem-se com outros movimentos sociais, criando laços de solidariedade e ampliando uma base social de resistência.
Mas a efetividade de alianças entre organizações sindicais e organizações não sindicais (ambientais, por exemplo), tem assumido contornos mais pontuais, táticos, do que um sentido estratégico. São, pois, recorrentes os obstáculos a tais alianças: distintos estilos organizacionais, de comunicação e tomada de decisão; competição entre organizações sindicais; formas distintas de ação coletiva (atuação sindical clássica de pendor institucional versus ação direta e extra-institucional de outros movimentos); défice de confiança e renovação nas organizações sindicais; posições radicais no seio dos atores/movimentos, etc.
Daí que seja crucial assumir uma atitude social de “remar para o mesmo lado”. Isso implica valorizar sinergias e potencialidades, tais como: queixas e exigências comuns (por exemplo, relacionadas com a necessidade de resistência face a níveis de desemprego e precarização inaceitáveis); reconhecer o lugar estratégico dos sindicatos no mundo do trabalho; maximizar a versatilidade e estratégias inovadoras dos novos atores/movimentos extra-sindicais; dar a conhecer plataformas e experiências de coligação bem sucedidas; identificação de organizações e de pessoas a trabalhar dentro/em articulação com ambos os atores de modo a criar sinergias e relações de confiança; propagação de debates no seio dos sindicatos sobre os seus desafios e futuro, etc.
Mesmo que as alianças não constituam um fim em si mesmo ou uma inevitabilidade, este elenco de fatores inibidores e facilitadores cumpre uma função pedagógica, de aprendizagem recíproca e de autoavaliação para organizações sindicais e não sindicais. Como tal, algo que ambas certamente não deixarão de ponderar nos seus discursos e nas suas práticas, pelo menos sempre que estiver em aberto a possibilidade de construção de futuras articulações.
Para uma sã coabitação entre organizações sindicais e não sindicais (como os coletivos de trabalhadores/ativistas em defesa do clima, etc.), importa fazer um esforço conjunto para responder à questão-chave levantada por Guilhermo Mont (investigador/técnico da OIT) na 1ª edição da “cátedra OIT”, realizada na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra em fevereiro de 2018: deviam os empregos preocupar-se com o ambiente?
A resposta a esta interrogação só pode ser positiva e assenta nalgumas premissas (a que o mesmo investigador aludia) que, em meu entender, as organizações sindicais deveriam incorporar de modo mais convicto nas suas agendas: i) os empregos dependem de recursos naturais escassos e finitos; ii) os empregos dependem dos serviços ecossistémicos; iii) a atividade económica depende de um ambiente estável e livre de desastres; iv) a pobreza pode causar degradação ambiental; v) a degradação ambiental é fonte de desigualdade.
Daí que, em nome de um sindicalismo de movimento social “pró-ambiental” e da inevitabilidade de que o mundo do trabalho incorpore as questões ambientais como tema de presente e de futuro, as organizações sindicais (em articulação com as organizações ambientalistas) devessem encarar de modo convicto as questões-chave da combinação entre crescimento e sustentabilidade ambiental ou entre esta e o trabalho decente. Com advertia G Mont, são igualmente necessárias orientações políticas para que se possa transitar para economias ambientalmente sustentáveis capazes de garantir mais e melhores empregos. A pressão (conjunta) das organizações sindicais e ambientais deve, pois, caminhar no sentido de criar quadros jurídicos robustos capazes de promover simultaneamente o trabalho decente e sustentabilidade ambiental, a proteção social para os trabalhadores que podem ficar a perder com a transição climática. Mas o desenvolvimento de competências próprias ajustadas a uma “economia verde” é igualmente crucial, assim como a maximização do diálogo social (entre empregadores e trabalhadores, entre governos e grupos vulneráveis, entre ativistas e a sociedade) como forma de salvaguardar os direitos e a posição de comunidades e grupos mais vulneráveis.
Em resumo, um sindicalismo de movimento social com preocupações ambientais é não só desejável como possível. Em primeira mão, depende das próprias organizações sindicais garantir o seu sucesso, abraçando os temas ambientais como algo inerente ao funcionamento do mercado de trabalho. Em complemento, é necessário que os coletivos de organizações de trabalhadores que lutam por empregos dignos e de qualidade na “economia verde” saibam passar ao sindicalismo uma mensagem da qual todos se orgulhem, em num “futuro a ganhar” que interessa a todos.
Hermes Augusto Costa, Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia, Centro de Estudos Sociais; hermes@fe.uc.pt