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Comunidades de Energia Renovável | Direito Universal à Energia Renovável – Vera Ferreira

Comunidades de energia

 

O controlo público do setor energético pode assumir diversas modalidades e tipologias, atendendo às diferentes escalas e atores: das nacionalizações das grandes empresas às cooperativas e comunidades de energia renovável, do Estado central aos cidadãos. Não obstante, o controlo público ou coletivo só será realmente benéfico e legítimo se assegurar o direito universal à energia renovável e se erradicar a pobreza energética.

Com efeito, mesmo a produção descentralizada de eletricidade renovável, apresentada pela Comissão Europeia e pelo Governo português como o principal meio de participação ativa dos cidadãos na transição energética, pode ser desvirtuada no mercado liberalizado, contribuindo para expandir a iniciativa privada e para agudizar desigualdades socioeconómicas. É este cenário que começa a vislumbrar-se em Portugal com a implementação gradual de comunidades de energia renovável (CER) e projetos de autoconsumo coletivo (ACC). Estes conceitos são frequentemente mobilizados de forma indiferenciada, ou como sinónimos. Não raras vezes, é simplesmente utilizado o termo “comunidade de energia” para ilustrar a produção, partilha ou venda de eletricidade renovável entre vários consumidores, independentemente dos contornos da iniciativa (quem a promove, quais os membros, ou quem detém a infraestrutura).

Importa, por isso, começar por distinguir os conceitos. De acordo com o Decreto-Lei n.º 15/2022, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional, o autoconsumo é o consumo assegurado por eletricidade gerada por uma ou mais unidades de produção, cuja fonte primária é a energia renovável (por exemplo, painéis fotovoltaicos). Assim, um autoconsumidor produz eletricidade renovável para consumo próprio (que também pode ser armazenada e vendida). Esta atividade pode ser exercida de forma individual ou, quando exista proximidade geográfica, coletiva (o exemplo mais usual é o dos condomínios). No caso do ACC, os participantes organizam-se de acordo com um regulamento interno por si definido, estipulam os coeficientes de partilha de energia e designam ou contratam uma Entidade Gestora do Autoconsumo Coletivo responsável pela sua representação.

As CER, por seu turno, podem ser constituídas por entidades singulares ou coletivas, públicas ou privadas, ou seja, desde cidadãos a empresas, passando pelas autarquias, e possibilitam a produção, partilha, armazenamento e venda de eletricidade renovável. Ao contrário do ACC, implicam a criação de uma entidade jurídica própria (cooperativa, associação, ou até sociedade) e poderão dedicar-se a outras atividades para além do autoconsumo, relacionadas, normalmente (mas não exclusivamente), com a eficiência energética ou a mobilidade elétrica. Em abstrato, a tipologia de CER estaria mais próxima da ideia de energia de base comunitária, uma vez que os seus membros não só detêm a infraestrutura, controlando a produção e o uso final da eletricidade renovável, como o seu âmbito de atuação é mais alargado, incrementando as oportunidades de deliberação coletiva e, desejavelmente, democrática (por exemplo, acerca da sua ampliação, ou adesão de novos membros).

Contudo, a ideia de “comunidade de energia” torna-se cada vez mais apelativa para diversas empresas privadas – entre as quais protagonistas do capitalismo fóssil, como a EDP Comercial – que, rápida e eficazmente, capturam a produção descentralizada, nomeadamente o modelo de ACC, limitando o espaço para as iniciativas de base comunitária. Embora ainda estejam pouco disseminadas em Portugal, as comunidades de energia são entendidas como um segmento de mercado inovador e com ampla margem de crescimento, pelo que, numa transição energética assente em mercados liberalizados, representam uma oportunidade de negócio ímpar. Acrescem os potenciais benefícios de imagem e reputação para estas empresas, que passam a apresentar-se como aliadas da transição energética, transmitindo a falsa ideia de que estão a “empoderar” os cidadãos.

Quer se trate de comercializadores de energia, ou de empresas especializadas na implementação de “comunidades de energia” (por exemplo, empresas tecnológicas que não operam no mercado retalhista de eletricidade), o seu modo de atuação é em tudo semelhante: oferecem soluções de autoconsumo coletivo “chave na mão”, assegurando o investimento inicial, a instalação e manutenção das unidades fotovoltaicas e o licenciamento do projeto junto das entidades competentes (Direção Geral de Energia e Geologia e E-Redes). Não é mais do uma mera transação comercial, em que os clientes não são proprietários dos painéis fotovoltaicos, nem se organizam coletivamente para gerir a eletricidade renovável produzida.

Para os comercializadoras de energia, as vantagens são por demais evidentes, já que preservam a sua posição no mercado liberalizado, beneficiando da transição energética, tal como beneficiaram da era dos combustíveis fósseis. Empresas como a EDP Comercial, através dos seus “bairros solares”, mantêm ou avolumam a sua carteira de clientes e aumentam a sua produção distribuída de eletricidade renovável – os seus clientes produzem energia durante o dia, através dos painéis fotovoltaicos e, à noite, quando estão realmente em casa a consumir, vão comprá-la novamente ao comercializador. Note-se, ainda, a perversão da ideia de “comunidade”, habitualmente entendida como algo benigno e positivo, aqui instrumentalizada para servir o mercado liberalizado e o lucro.

As CER de base cidadã esbarram, assim, contra o poder dos atores incumbentes e os recursos financeiros das empresas privadas. Ademais, na ausência de transformações estruturais no setor energético, mesmo as escassas iniciativas que procuram, de facto, fomentar a organização coletiva em torno da energia renovável poderão vir a reproduzir desigualdades socioecónomicas. Se, por um lado, o investimento dos cidadãos é o garante da propriedade e do controlo efetivo por parte dos membros da CER (evitando a cooptação por parte de entidades externas), também exclui quem não tenha recursos financeiros para o realizar. Mesmo que uma CER se norteie por princípios de justiça social, facilitando a adesão de agregados familiares em situação de pobreza energética, o seu alcance é limitado, cingindo-se à escala local ou, na melhor das hipóteses, regional.

Ora, a pobreza energética é um problema social estrutural em Portugal, pelo que é crucial garantir que a designada “cidadania energética”, traduzida na produção descentralizada de eletricidade renovável, mas também na aquisição de equipamentos mais eficientes, ou na renovação energética das habitações, não se torna num privilégio de quem tem recursos financeiros, nem numa responsabilidade individual. Se a energia for entendida como um direito e não como uma mercadoria, então cabe ao Estado retomar o seu papel na provisão de bens públicos.

Direito à energia

 

O direito à energia, quando concebido como o acesso a serviços energéticos essenciais, tem como referente o indivíduo e/ou os agregados familiares e a satisfação das suas necessidades básicas. A concretização deste direito requer, desde logo, a criação de um cabaz de serviços energéticos essenciais, tendencialmente gratuito. Estes serviços deverão incluir, no mínimo, o fornecimento de eletricidade renovável para os diversos usos domésticos e o acesso à mobilidade elétrica, designadamente a transportes públicos. Cumpre ao Estado, através de um serviço público de energias renováveis, salvaguardar esse acesso universal.

Não obstante, o direito à energia renovável, tal como a discussão em torno das iniciativas de base comunitária permite antecipar, também se materializa na esfera coletiva. Deste modo, o direito à energia remete, simultaneamente, para o controlo da energia, isto é, a propriedade e gestão do setor energético e respetivas infraestruturas. O controlo da energia é assegurado, em primeiro lugar, pela reconquista de soberania energética, mais concretamente, através da propriedade pública dos principais centros electroprodutores renováveis (barragens e parques eólicos) e da renacionalização das redes de transporte e distribuição.

Apesar da centralidade do papel do Estado, a reivindicação do controlo da energia renovável por parte de cidadãos enquadrados em cooperativas, associações, ou outras entidades, não pode ser ignorada num sistema público de energias renováveis. Embora descentralização não seja sinónimo de democratização, a organização coletiva em torno da energia renovável – se norteada por princípios de justiça climática e, portanto, social – pode contribuir para a construção de um sistema público de energias renováveis mais democrático. Com efeito, poderá ter um efeito mobilizador, gerando um movimento de massas favorável e empenhado na transição energética, reforçando a sua legitimidade política. Ademais, poderá suprir eventuais lacunas na provisão de serviços energéticos essenciais, ainda que apenas à escala local.

É crucial ressalvar que o direito à energia, sendo universal, não deve ser incondicional, isto é, devem ser definidos, de acordo com critérios sociais e ecológicos compatíveis com a transição energética, os usos finais legítimos num sistema energético desmercadorizado e descarbonizado. Tal implica a adoção de instrumentos de planeamento democrático que garantam que:

– A produção de eletricidade renovável, especialmente, o solar fotovoltaico, não colide e prejudica outros usos do solo e atividades económicas igualmente necessárias para a transição energética. Destacam-se, neste contexto, as mega centrais fotovoltaicas detidas por empresas privadas que estão a ser instaladas no Alentejo. Uma empresa pública não poderia simplesmente reproduzir esta lógica extrativista e produtivista, ainda que em nome da transição energética. Daí a importância de definir, a montante, quais os objetivos ecológicos e de justiça social que esta transição energética pretende alcançar. Os atores que atuam na esfera pública devem transparência aos cidadãos; devem ser mais facilmente responsabilizados e escrutinados. Além disso, têm de reconhecer que a transição energética não pode ser feita a qualquer custo, destruindo ecossistemas, biodiversidade e modos de vida locais;

– O modelo de produção de eletricidade renovável tem em vista a eficiência energética e não a expansão energética. O objetivo passa por otimizar os consumos e não aumentar a produção de energia para usos supérfluos. Uma vez mais, tal implicaria uma discussão prévia acerca dos usos válidos da energia, isto é, que atividades económicas e indústrias devem extinguir-se ou ser severamente limitadas (cimento, pasta e papel, transporte marítimo e aéreo, indústria automóvel, publicidade) e quais devem crescer (agricultura agroecológica, vigilância florestal, transportes públicos, gestão de resíduos, atividades relacionadas com o cuidado, onde se incluem a saúde e a educação).

 

Operacionalização do direito à energia

 

A operacionalização do direito à energia, aqui entendida enquanto acesso a serviços energéticos essenciais, começa, mas está longe de se esgotar, na substituição de medidas pontuais e assistencialistas (como a tarifa social de energia, o “vale eficiência”, o programa “bilha solidária”, a redução parcial do IVA da eletricidade) por políticas realmente universais.

Embora não se subestime a importância da tarifa social de energia (que conta com mais de 800 mil beneficiários em Portugal) no alívio imediato da fatura energética, esta não constitui uma solução sustentável a longo prazo. Além disso, programas como o “vale eficiência”, destinados à aquisição de janelas mais eficientes, ou à instalação de painéis fotovoltaicos, requerem um investimento imediato, a que se soma toda a burocracia complexa que dificulta (e, por vezes, impossibilita) o preenchimento das candidaturas. Ora, as famílias em situação de pobreza energética dificilmente teriam condições financeiras para realizar tamanho investimento inicial.

A origem da pobreza energética é multifatorial: combina fatores estruturais, como a persistência de elevados níveis de pobreza e de exclusão social, com o os preços elevados da energia, o fraco desempenho energético dos edifícios e dos equipamentos, a construção de má qualidade e a baixa taxa de reabilitação dos edifícios. O governo estima que estejam em situação de pobreza energética entre 1,8 e 3 milhões de pessoas, das quais entre 660 e 680 mil em pobreza energética severa. Há que assinalar que este fenómeno ultrapassa o universo da pobreza monetária, englobando agregados, eventualmente da classe média, que restringem o uso de energia ao ponto de prejudicar a sua saúde e qualidade de vida, na tentativa de conter a subida da fatura da eletricidade e/ou do gás. Conclui-se, assim, que é urgente agir em diversas frentes:

– Uma vez que a concretização de um direito universal à energia tem de começar ainda neste modelo liberalizado e fóssil, há-que adotar medidas transitórias e de curto prazo, que garantam o acesso irrestrito e universal à energia, independentemente da fonte, que passam por: controlar os preços da eletricidade, do gás natural e do gás engarrafado (que não é abrangido pela tarifa social, embora seja utilizado por mais de dois milhões de famílias, particularmente as mais pobres); banir os cortes de energia; aliviar as dívidas aos comercializadores; democratizar o acesso à informação e simplificar os processos administrativos.

– Já a médio prazo, deverá ser realizado um mapeamento exaustivo da pobreza energética em Portugal (adaptando o modelo dos Censos, por exemplo), de modo a aferir as necessidades de reabilitação e renovação energética de todo o parque habitacional. Estas intervenções no edificado deverão ser executadas através de investimento público e o processo deverá ser automático (dispensando qualquer candidatura ou condição de recursos), priorizando os agregados familiares em situação de pobreza energética severa. Nos casos em que as intervenções não garantam uma melhoria do desempenho energético e do conforto térmico, devem ser oferecidas alternativas de habitação aos residentes, com rendas acessíveis.

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