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Crise ecológica, Coronavírus e cuidado. O que aprendemos sobre “trabalho essencial” e como isto pode afetar a campanha Empregos Para o Clima – Stefania Barca

A campanha Empregos para o Clima assenta na ideia – solidamente fundamentada por dados – de que “os setores-chave que têm impacto direto nas emissões”, como “energia, transportes, construção, gestão de florestas e agricultura”, oferecem a oportunidade de criar novos empregos ao reduzir as emissões nesses mesmos setores. A ideia de fundo é que estes setores devem ser essenciais para uma transição pós-carbono justa, ou seja, para uma transição que não implique o empobrecimento e a privação de recursos para a população. Em suma, os chamados “empregos para o clima” providenciariam o trabalho necessário quer para salvar o planeta, quer para mitigar a pobreza e as desigualdades sociais. Esta perspetiva, que o movimento laboral internacional tem vindo a defender há pelo menos uma década, tem culminado nas propostas da chamada Transição Justa e do Green New Deal.

Como já defendi em várias ocasiões, trata-se de uma abordagem de “realismo radical” que oferece a oportunidade histórica de responder à crise climática a partir de baixo, isto é, juntando os movimentos laboral e ecológico numa plataforma comum de transição pós-carbono. Contudo, essa perspetiva também apresenta várias limitações e dilemas, que têm vindo a ser debatidos dentro do movimento global pela justiça climática, bem como no debate académico/ativista.

Um exemplo relevante para o caso português prende-se com a conversão da produção energética para o setor elétrico, que tem vindo a ser contestada por comunidades rurais afetadas pela mineração de lítio que tem transformado estas comunidades em novas “fronteiras da mercadoria”. Exemplos semelhantes a este encontram-se noutros setores com alto impacto territorial, como na construção de transportes ferroviários ou na produção em larga escala de energia solar. Trata-se de contradições assentes no seio do sistema urbano/industrial capitalista globalizado, que marcam o processo de transição com desigualdades de poder e conflitos, tanto materiais, quanto simbólicos, ou seja, derivantes de diferentes visões políticas.

Embora não existam receitas simples e universais para enfrentar estas contradições, a história da relação trabalho/ecologia nas últimas décadas ensina-nos que um motivo notável de divisão ente o movimento laboral e os outros setores sociais desfavorecidos tem sido, a partir dos anos noventa, a convergência do movimento laboral com a visão da chamada “modernização ecológica” – a visão de que a solução da crise ecológica se encontra na mudança tecnológica, e portanto, que a transição justa se centra numa coligação entre capital, estados e sindicatos industriais.

Esta visão apresenta a vantagem de ser vista como realista – tanto na capacidade de mobilizar a opinião pública, como na de conduzir a uma redução das emissões rápida e eficaz; contudo, tal realismo apresenta custos cuja importância não deve ser subestimada. O maior custo é o de renunciar à oportunidade histórica, por parte da classe trabalhadora, de desafiar o modelo social e económico hegemónico, assumindo um papel chave na transformação das relações socio-ecológicas que levaram à crise atual.

Por outras palavras, o realismo eco-modernizador talvez poderá conduzir a uma solução conjunta da crise climática e do desemprego, mas as desigualdades de poder e as injustiças – de classe, género, raça, e espécie – que caraterizam o sistema capitalista, ficarão intactas. Isto significa que vários sujeitos sociais ficam de facto excluídos da ‘transição justa’: não sendo as suas lutas tomadas em conta, nem a sua possível contribuição valorizada. De facto, nesta visão limitada de transição que domina o discurso público, só as “forças de produção” (trabalho industrial assalariado; conhecimento científico) têm valor, agência e subjetividade política, enquanto o trabalho de reprodução e o de cuidado são vistos como auxiliários invisíveis, ficando excluídos da transição.

Neste artigo, pretendo focar a minha atenção numa das dimensões mais críticas do debate sobre a transição justa, que surgiu especialmente após o início da pandemia do coronavírus: a falta de consciência de género. Em particular, pretendo discutir a ideia de que o trabalho de cuidado também é relevante para a transição pós-carbono. Segundo a plataforma para um Novo Pacto Verde Feminista, por exemplo, os cuidados são vistos como “um trabalho valioso, de baixo carbono e baseado na comunidade, que deveria ser reavaliado e central para a nossa nova economia”. Semelhantemente, o Plano para uma Transição Justa na Europa considera o cuidado “para com as pessoas e o planeta” parte integrante do seu programa de “emprego público verde”, e propõe a implementação de um Rendimento de Cuidado. Em resposta à crise do cuidado evidenciada pela pandemia, esta última proposta tem sido levantada pelo movimento Greve Mundial das Mulheres numa campanha internacional que cruza a perspetiva da luta pela contabilização e remuneração do trabalho de cuidado informal com uma nova perceção da relevância desse trabalho para a saúde das pessoas e do planeta.

A ideia aqui é dupla: por um lado, reconhecer a produção, cuidado e socialização dos seres humanos como um trabalho tão essencial quanto a produção de bens e serviços; por outro lado, considerando a importância da ligação entre a saúde e o bem-estar das pessoas com a saúde e o bem-estar do ambiente, reconhecer a potencialidade ecológica do trabalho de cuidado. Tal reconhecimento levaria à necessidade de remunerar, de modo adequado, esse trabalho essencial.

Assim, neste artigo tenciono desafiar a campanha Empregos Para o Clima a refletir sobre a oportunidade de incorporar a perspetiva feminista acima mencionada através da proposta de criar uma quantidade significativa de novo emprego no âmbito dos cuidados doméstico, comunitário e territorial. Esta proposta tem como base três princípios, que vou enunciar brevemente, argumentando de seguida:

  1. O cuidado é trabalho essencial não apenas para a re/produção e para o desenvolvimento dos seres humanos, como também para a re/produção de um ambiente saudável e seguro;

  2. O cuidado doméstico e comunitário são atividades com alto valor social, mas com baixas emissões de carbono;

  3. O cuidado dos territórios rurais – especialmente sob a forma de resistência ao extrativismo – contribui para a redução significativa das emissões, para a prevenção de desastres, e ainda para a saúde pública.

A minha proposta assenta numa perspetiva de economia política feminista, que se centra na observação de que o cuidado é um trabalho essencial, mas maioritariamente não reconhecido como tal, e socialmente desvalorizado. Ao mesmo tempo, proponho estender esta perspetiva à esfera ecológica, isto é, tornar visível e valorizar (por meio de exercícios de contabilização) a potencialidade escondida da contribuição do cuidado para a redução das emissões de carbono e, em geral, para a sustentabilidade ambiental.

A campanha Empregos Para o Clima, assim como o discurso sindical sobre transição justa, parte do pressuposto de que as duas principais crises do nosso tempo são a crise climática e a crise do emprego. Desde há muito tempo, todavia, movimentos e estudos feministas a nível global têm vindo a argumentar que vivemos no meio de uma crise dos cuidados sem precedentes históricos. Como uma vasta literatura especializada tem argumentado, a viragem neoliberal das últimas três décadas tem produzido uma grave falta de investimentos no cuidado ao nível de políticas públicas, o que por sua vez tem produzido enormes custos sociais e um aumento exponencial da carga de cuidado não remunerado, desenvolvido sobretudo pelas categorias sociais economicamente marginalizadas, isto é, mulheres, na sua grande maioria de baixos rendimentos, migrantes, e pessoas transgénero.

Foram produzidos dados incontestáveis ao longo das últimas quatro décadas sobre a imensa quantia de horas de trabalho não remuneradas que são necessárias para a re/produção dos seres humanos e para a satisfação das suas necessidades materiais e imateriais. A não remuneração afeta as/os cuidadoras/es de forma desigual, dependendo da classe social, da cidadania, da cor de pele, do género, da orientação sexual, do grau de especialização e do acesso a recursos. Essas desigualdades tornam o cuidado numa área de imensa, embora em grande parte invisível, injustiça social.

Ao mesmo tempo, a crise fiscal do setor público tem levado à intensificação do extrativismo e a desinvestimentos na vigilância ambiental e de saúde pública, com o consequente aumento da poluição, do risco ambiental e das doenças associadas a este fenómeno. Embora não seja facilmente quantificável, parece evidente que este aumento dos riscos ambientais gera uma carga adicional de trabalho, devido à necessidade de cuidar dos corpos e dos territórios afetados. Embora a pandemia tenha tornado mais visível a importância dos cuidados domésticos face aos riscos ambientais e de saúde pública, bem como as desigualdades que o afetam, a não remuneração desse trabalho continua a reproduzir injustiças.

Além disso, a crise da biodiversidade e a perda de formas de vida tem assumido dimensões de genocídio, com consequências tenebrosas para a própria evolução e sobrevivência da espécie humana – incluindo as zoonoses que deram origem à atual pandemia do coronavírus. Em suma, a pandemia é apenas a última demonstração poderosa do que movimentos ecofeministas, indígenas, ecossocialistas e pela justiça ambiental e climática têm vindo a defender há muito tempo, isto é, que o capitalismo globalizado constitui uma grave ameaça à saúde e à sobrevivência dos seres vivos e do ambiente.

Mas esta não é a história completa. Falta reconhecer e valorizar a agência do que chamo de “forças de reprodução”, isto é, daquele trabalho que contrasta a degradação ambiental com uma constante obra de proteção, manutenção e regeneração das condições de reprodução. Boa parte deste trabalho faz-se de forma não remunerada, tanto na esfera doméstica, como nas comunidades e seus territórios, embora seja invisibilizado e mudo na esfera pública.

Em ambientes rurais, uma enorme quantidade de trabalho de cuidados não remunerado prende-se com a agricultura de subsistência e a integridade territorial: qualidade e regeneração do solo, conservação da água, poupança e partilha de sementes, manutenção paisagística e de ecossistemas agrícolas, preservação e socialização de conhecimento local – tudo isto deve ser reconhecido como trabalho essencial com uma grande relevância ecológica. Sendo maioritariamente invisível e desapreciado, este trabalho é constantemente ameaçado pelas, mas também resistente, às industrias extractivistas e poderes financeiros que pretendem apropriar-se do que vêm como recursos naturais. Isto tem vindo a acontecer em Portugal e na periferia Europeia em geral, especialmente após a crise financeira.

Os governos olham atualmente para os territórios como recursos que podem oferecer receitas para pagar a dívida nacional – e muitas comunidades rurais, tanto em áreas interiores como costeiras, estão a resistir a esta nova onde de extração mineira, devido ao facto de isto ser nocivo para os seus territórios, mas também pelo clima, visto que esta extração significaria uma sentença de morte para as gerações mais novas. Por todo o país, um grande número de comunidades rurais emprega inúmera energia, tempo e trabalho para defender os seus ambientes contra o extrativismo. Isto deve ser considerado como um trabalho essencial de vigilância territorial e de cuidado, ao proteger a saúde e o bem-estar dos humanos e dos ecossistemas e ao prevenir danos futuros que representam um verdadeiro custo social. O cuidado territorial tem sido praticado há muito pela população mais velha, mas desde a crise financeira de 2008 que cada vez mais as gerações mais novas têm vindo a reclamar o seu direito de habitar e viver uma vida digna no campo. Muitas horas de trabalho individual e coletivo estão a ser empregues para organizar a resistência anti-extrativista, i.e., para manter o gás e o petróleo debaixo do solo, bem como para elaborar, apoiar e lutar por projetos alternativos de desenvolvimento.

Em ambientes urbanos, uma grande quantidade de trabalho de (auto)cuidado não remunerado também tem vindo a ser desenvolvido por indivíduos e grupos organizados em resposta às necessidades não atendidas de pessoas empobrecidas – habitação pública degradada, zonas industriais abandonadas e centros urbanos a desmoronar-se. Práticas agrícolas urbanas oferecem produtos locais, baratos e frescos, produzindo, em simultâneo, espaços verdes e oxigénio ao mesmo tempo que regeneram o solo e paralisam a cimentação. Recolhedores de desperdício e mercados de roupa em segunda mão contribuem para práticas de baixo impacto de reutilização e de reciclagem. Artistas de rua e grupos ativistas revitalizam espaços abandonados, criando oportunidades para uma socialização que não seja baseada na mercadoria, bem como para economias de solidariedade e de ajuda mútua. Voluntários/as comunitários/as ajudam as pessoas a sobreviver e a ter acesso a serviços essenciais. Apesar deste trabalho ser invisível e não contabilizado na balança fiscal nacional, é essencial para o bem-estar de todas as pessoas que não têm acesso a um estilo de vida de classe média. Também ajuda a resistir à expansão das relações alienadas e baseadas na mercadoria entre pessoas e entre as pessoas e a cidade, juntando bairros e gerando comunidades. Em tempos de desastres climáticos ou de saúde pública (como aquele em que vivemos) estas redes ativam atividades de solidariedade e de apoio mútuo que são essenciais à sobrevivência, recuperação e restauração.

Em suma, tanto nos ambientes urbanos, como nos rurais, uma enorme quantidade de trabalho é gasta em atividades reprodutivas diárias que visam garantir o bem-estar das pessoas e dos territórios, compensando pela falta de serviços públicos adequadas e pelos efeitos esgotantes da produção capitalista. Visto desta perspetiva, a transição justa significa, então, unir o trabalho industrial e de cuidado numa plataforma política comum – porque todas as pessoas da classe trabalhadora, de todos os géneros e sexos, urbanas e rurais, têm as mesmas necessidades materiais: acesso a comida barata e limpa, energia, habitação, educação, saúde, e um ambiente saudável para todas as gerações presentes e futuras.

Sendo o trabalho maioritariamente não remunerado de cuidados doméstico, comunitário e territorial um trabalho essencial e de baixo-carbono, este constitui uma oportunidade única para criar novos “empregos para o clima” com um potencial único de reduzir as emissões de carbono de Portugal, prevenindo desastres, salvaguardando o bem-estar socio-ecológico e aumentando a igualdade e inclusão social. Aprendendo através da lição dura da pandemia do coronavírus, a campanha podia encontrar maneiras de ultrapassar a divisão sexual do trabalho, ou seja, o priorizar do trabalho industrial/remunerado sobre o trabalho de cuidado, reprodutivo e não remunerado – uma construção capitalista/patriarcal que pretende manter a classe trabalhadora fraca e dividida.

Incluir trabalho de cuidado doméstico, comunitário e territorial nos seus planos para criar novos empregos, a campanha poderia também alargar a esfera de potenciais alianças a setores e movimentos sociais que se têm mantido externos até agora – ultrapassando, deste modo, a separação fictícia não só entre o movimento laboral e o movimento climático, mas também entre o produtivo e o reprodutivo, bem como entre as esferas urbanas e rurais. A campanha Empregos Para o Clima tornar-se-ia, assim, numa plataforma “realista radical” mais forte, através da unidade de todas estas forças potencialmente transformadoras para uma transição pós-carbono mais eficaz e verdadeiramente justa.


Stefania Barca é investigadora doutorada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e atualmente ocupa o cargo de Zennström visiting professor no programa de “Climate Change Leadership” da Universidade de Uppsala (Suécia).

Imagem: Diverse Economies Iceberg, disponível em https://www.communityeconomies.org/resources/diverse-economies-iceberg

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