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Enquadramento Legal de um Serviço Público de Energias Renováveis – Maria Paixão

De onde vimos e como chegamos aqui?

A primeira legislação portuguesa a debruçar-se especificamente sobre o setor energético data de 1944 – a Lei de Eletrificação do País. Ao abrigo desta lei, a atividade de produção era exercida por privados em regime de concessão, sendo as centrais consideradas instalações de utilidade pública. É curioso notar que, já ali, se previa a possibilidade de o Governo determinar a paralisação temporária ou definitiva de centrais térmicas (de queima de biomassa ou combustíveis fósseis), quando fosse possível substituí-las por produção hidráulica. Além disso, o próprio Estado poderia proceder à instalação de centrais de grande interesse público. Com a Revolução de 74, todos os serviços do setor elétrico foram nacionalizados, tendo sido criada a Eletricidade de Portugal (EDP) – uma empresa pública dedicada a exercer todas as atividades do setor. A nacionalização foi operada pelo Decreto-Lei n.º 205-G/75. Desde 1975 até 1988, a atividade elétrica manteve-se reservada ao Estado português, sendo desempenhada pela EDP em regime de monopólio legal – o paradigma do serviço público. Seria com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia que o panorama começaria a mudar. O Decreto-Lei n.º 189/88 veio revogar um diploma de 1977 que vedava por completo o acesso de privados ao setor elétrico, autorizando o exercício privado da atividade de produção de energia. Em dezembro do mesmo ano, um novo diploma veio abrir aos privados também as atividades de transporte e distribuição. Contudo, a grande transformação do setor estava por vir: em 1995 seria aprovado o “grande pacote legislativo” do sistema elétrico nacional. Os vários diplomas que faziam parte do pacote puseram em marcha o processo de desmantelamento do monopólio público detido pela EDP. Nos anos seguintes foram publicadas as Diretivas 96/92/CE (referente à eletricidade) e 98/30/CE (relativa ao gás natural) que conformaram o Primeiro Pacote Energético da UE, cujo efeito principal era forçar a separação das atividades do setor, pondo fim à integração vertical das empresas. Em 2003, o Segundo Pacote Energético da UE veio dar ímpeto à abertura dos mercados à concorrência. E em 2009, o Terceiro Pacote Energético veio definitivamente instituir a separação efetiva entre as atividades de rede (monopolistas) e as atividades de produção e comercialização (concorrenciais). Estes pacotes foram sempre acompanhados por nova legislação nacional, em sucessivos Decretos-Lei que, em larga medida, se orientaram no sentido do aprofundamento da liberalização do setor da energia, em linha com o objetivo das Diretivas europeias de criar um “mercado interno de energia”.

Em vigor, atualmente, estão o Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Nacional de Gás e o respetivo regime jurídico e procede à transposição da Diretiva (UE) 2019/692, e o Decreto-Lei n.º 15/2022 de 14 de janeiro, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional, transpondo a Diretiva (UE) 2019/944 e a Diretiva (UE) 2018/2001. Estes diplomas, entre outras coisas, vieram reforçar a concorrência ao longo de todo a fileira energética, impondo a realização de concurso público para atribuição das concessões de serviço público e das licenças em regime de utilidade pública.

Esta exposição do percurso histórico é aqui incluída uma vez que a sua análise nos permite retirar algumas conclusões interessantes. Em primeiro lugar, o setor energético tem sido enquadrado pela lei portuguesa como serviço público desde os primórdios da eletrificação do país, sempre se tendo reconhecido ao Estado fortes poderes de intervenção. Em segundo lugar, a entrada de Portugal na CEE veio mudar profundamente a dinâmica do setor energético: tendências de liberalização, desregulação e separação das atividades passaram a marcar a política e a legislação nacionais. Convém notar que a entrada de Portugal na CEE coincidiu, sensivelmente, com uma profunda transformação dentro da Comunidade, decorrente da assinatura do Ato Único Europeu (1986), em particular, no que diz respeito à Energia: durante as primeiras décadas da sua existência, o setor da energia estava fora do âmbito de intervenção das instituições comunitárias, entendendo-se que havia uma incompatibilidade entre as regras da concorrência e a natureza de serviço público do setor. Foi no final da década de 80 que este entendimento se alterou, começando a energia a ser vista como “estratégica” para a competitividade externa da Comunidade. Mais tarde, em 1992 o Tratado de Maastricht introduziu, pela primeira vez, o conceito de “mercado interno de energia”. Foi, exatamente, o objetivo de criar um mercado único integrado por todos os Estados membros que conduziu à elaboração dos primeiros instrumentos jurídicos vinculativos da UE em matéria de energia, cujo objetivo assumido era iniciar o desmantelamento dos monopólios nacionais de modo a promover a concorrência transnacional.

Apesar disto, é curioso notar dois pormenores acerca das opções nacionais: Portugal adiantou-se ao primeiro pacote europeu e antecipou as mudanças que viriam a ser exigidas nos anos seguintes pelas Diretivas comunitárias (em 1996 e 1998), criando o seu primeiro pacote liberalizador logo em 1995; e, ao longo de todo o processo liberalizador, pode afirmar-se que a lei portuguesa tem, regra geral, ido além das exigências do Direito da UE. O aspeto mais paradigmático a este respeito é a total privatização do setor energético em Portugal: a legislação da UE não exige a privatização das empresas públicas e Portugal é o único país da UE-27 (o Reino Unido era o único outro Estado membro na mesma situação) que privatizou completamente o setor. Pode dizer-se, por isso, que, embora os “ventos” que sopraram da UE tenham sido determinantes para a transformação do setor energético em Portugal, a opção fundamental de total privatização foi uma decisão nacional.

 

Qual o estado atual do setor?

Visto o panorama histórico, passamos agora a apresentar o estado atual do enquadramento jurídico do setor energético. No âmbito do Sistema Elétrico Nacional, as atividades de produção, armazenamento, comercialização e agregação de eletricidade estão completamente liberalizadas, sendo exercidas em regime concorrencial de livre acesso – qualquer entidade que cumpra os requisitos legais pode entrar no mercado. As atividades de transporte e distribuição, por sua vez, são exercidas em regime de concessão de serviço público. Isto significa que o transporte e distribuição são exercidos em regime de exclusividade (entregando-se a exploração da rede a um único operador num determinado âmbito geográfico – nacional, regional ou local) e sujeitos a regulação mais apertada. Portanto, estas atividades não estão sujeitas à concorrência, sendo exercidas pelo concessionário contratado pelo Estado (atualmente, a REN e a E-REDES). Em termos paralelos, no Sistema Nacional de Gás, as atividades de receção, armazenamento e regaseificação, armazenamento subterrâneo, transporte e distribuição são exercidas em regime de concessão de serviço público; as atividades de produção e comercialização são exercidas em regime de livre concorrência. Este quadro, na base, resulta de imposições comunitárias: todas as atividades que podem (material e tecnicamente) ser exercidas em livre concorrência, devem ser exercidas num contexto de mercado; só estão fora do mercado as atividades que formam monopólio natural, nomeadamente por dependerem de redes ou outras infra estruturas não multiplicáveis.

Ora, olhando para o estado atual da legislação nacional e para as imposições que decorrem das Diretivas da UE, podem retirar-se as seguintes conclusões:

  • De acordo com o Direito vigente, algumas atividades estão obrigatoriamente sujeitas à concorrência, devendo poder ser exercidas por quaisquer entidades que pretendam exercê-las – referimo-nos, em particular, às atividades de produção e comercialização de eletricidade e gás e de armazenamento e agregação de eletricidade.
  • A liberalização destas atividades não impede, de modo algum, que o Estado também as exerça (assim acontece, aliás, em muitos países da União) – só tem de existir, pelo menos, potencial concorrência.
  • Apesar das pressões liberalizadoras, tanto o Direito da UE como o Direito português reconhecem (1) que algumas atividades do setor energético não podem estar no mercado e (2) que essas atividades têm natureza de serviço público (e as infraestruturas de que dependem têm utilidade pública). Estas atividades são as atividades de transporte e distribuição de eletricidade e gás e de receção, armazenamento e regaseificação de GNL e de armazenamento subterrâneo de gás.
  • Quanto às atividades fora do mercado, o Direito da UE não faz quaisquer exigências relativas à titularidade (pública ou privada) das entidades que as exercem, apenas exigindo que a sua independência em relação às empresas que exercem as atividades concorrenciais. Foi opção do Estado português privatizar as empresas monopolistas – teria sido possível (e é esse o modelo implementado na esmagadora maioria dos demais Estados membros da UE) simplesmente fragmentar a pré-existente empresa pública em várias empresas, uma para exercer cada atividade.
  • As empresas que desempenham as atividades monopolistas – em particular, o transporte e a distribuição – são selecionadas na sequência de um concurso público. A obrigatoriedade de realizar concurso público não é uma imposição do Direito da UE, antes sendo, mais uma vez, uma opção nacional.
  • Nada impede que uma empresa pública vá a concurso com empresas privadas (a lei prevê, inclusivamente, essa hipótese, desobrigando o Estado de alguns requisitos legais).
  • Na legislação portuguesa há apenas uma atividade que pode ser exercida diretamente por entidades públicas, sem necessidade de concurso público: a distribuição de eletricidade. A lei do Setor Elétrico Nacional prevê que a distribuição de eletricidade possa ser realizada diretamente pelos Municípios. A (re)municipalização da distribuição de eletricidade tem sido uma tendência com muita força por toda a Europa, sendo a Alemanha o exemplo paradigmático de retoma da rede de distribuição para o domínio público municipal.

 

Para onde podemos ir?

Antes de avançar para as opções de re-apropriação pública do setor enérgico, convém fazer uma nota sobre a compatibilidade desse processo com o Direito vigente da UE, uma vez que a suposta incompatibilidade é a justificação mais comummente avançada para silenciar o debate público. Em primeiro lugar, é importante sublinhar que o Tratado de Funcionamento da UE (que constitui o quadro legal de base da União, uma “quase Constituição”) dispõe expressamente que o Direito da UE em nada prejudica o regime da propriedade dos Estados membros (art. 345.º). Portanto, por princípio, as regras comunitárias não impõem a propriedade pública ou privada ou o exercício público ou privado de atividades económicas. Neste ponto, é crucial reforçar novamente que as Diretivas da Energia têm um objetivo liberalizador (de colocar as atividades suscetíveis de concorrência num mercado concorrencial, no seio do qual qualquer operador económico pode exercer a atividade em causa) e não um objetivo privatizador (de tornar privadas as empresas ou atividades públicas); e mesmo a liberalização não se estende aos setores de monopólio natural. Sendo certo que a própria liberalização do setor energético é altamente contestável, é indiscutível que em nenhum momento o Direito da UE obrigou à privatização. E basta olhar para a composição atual do setor para compreender que não é a propriedade pública que constitui um obstáculo à concorrência, inclusive nos setores liberalizadores. Em segundo lugar, embora as regras do TFUE quanto à proibição dos auxílios de Estado e às liberdades económicas fundamentais possam exigir alguns cuidados adicionais, elas não impedem, em abstrato, a atuação de empresas públicas. O Tratado apenas exige que uma empresa que tenha uma posição dominante por ser detida pelo Estado não ‘abuse’ dessa posição para eliminar a concorrência. Quanto aos auxílios de Estado, o Tratado admite a atribuição de auxílios a certas empresas para salvaguarda de interesses superiores. Ora, parece ser de entender que a transição energética deve configurar como um tal interesse superior: por um lado, o Direito da UE reconhece a excecionalidade da emergência climática; e, por outro lado, os próprios operadores no mercado reconhecem as dificuldades de fazer essa transição (argumento com que justificam, aliás, a sua inação), pelo que fica evidente que só resta a intervenção do Estado. Em terceiro lugar, no quadro legal português, a apropriação pública é considerada legítima quando fundada no interesse público. Não parece haver interesse público mais premente do que o enfrentamento da maior ameaça à sobrevivência da Humanidade. O próprio Conselho Económico e Social afirmou que, perante ameaças que se acumularam na última década, «A consequência lógica seria, portanto, a propriedade pública, que deve ter por finalidade proteger o bem comum e eliminar as desigualdades existentes.»[1]. Por fim, é ainda de referir que as empresas privadas a atuar no setor energético gozam de significativos auxílios estaduais, pelo que seria completamente desrazoável afirmar que uma empresa pública, só por ser pública, representa uma qualquer forma de “concorrência desleal”. A todos os argumentos técnico-jurídico apresentados acresce ainda um óbvio argumento empírico: nos Estados membros da UE há inúmeras empresas públicas a atuar ao longo de toda a fileira energética, desde a produção até à comercialização. E mesmo no campo das atividades liberalizadas, há Estados membros onde as empresas públicas dominam a totalidade ou quase totalidade dos mercados (vejam-se, por exemplo, os casos de França, Finlândia, Suécia, Eslovénia…).

Para onde vamos e para onde queremos ir?

Chegados aqui, é momento de considerar as possíveis vias jurídicas para fazer retornar o setor energético ao domínio público. Quanto a este ponto, convém ter um ponto prévio em mente: quando falamos em fazer retomar ao setor público as atividades de transporte e distribuição de eletricidade e gás e de receção, armazenamento e regaseificação e de armazenamento subterrâneo de gás, o objetivo pode ser completamente alcançado, já que estas atividades estão fora do mercado; o mesmo já não se pode dizer quanto às atividades de produção e comercialização de eletricidade e gás natural e de armazenamento e agregação de eletricidade, pelo menos em face do Direito atual (obviamente, nada impede a construção de um quadro jurídico de base diferente!), uma vez que tais atividades, podendo ser desenvolvidas por empresas públicas, terão de continuar abertas pelo menos a concorrência privada potencial.

Tendo em conta esta distinção, uma primeira observação se impõe. Quanto às atividades liberalizadas, sempre seria possível o Estado criar empresas de raiz e colocá-las no mercado a concorrer com as empresas privadas existentes. Todavia, como bem se compreende – e apesar das alegações neoliberais segundo as quais basta a existência de um mercado para haver concorrência real e qualquer operador novo conseguir entrar no mercado –, seria extremamente difícil levar a cabo este projeto com algum sucesso. Em geral, é sempre difícil entrar num mercado já existente, verificando-se, como tem sido documentado, uma tendência para a progressiva “monopolização” dos mercados: as grandes empresas acumulam progressivamente maior quota do mercado mediante eliminação da concorrência. Esta dificuldade é ainda mais pungente num setor como o setor energético. Quanto à comercialização, são óbvias as restrições: dada a essencialidade do serviço e a necessidade de fornecimento contínuo, a mudança de fornecedor não é apelativa e, como têm demonstrado variados estudos, tende a ser demasiado onerosa para os utilizadores. Quanto à produção, o tipo de atividades que estão em causa exigem largas economias de escala e o investimento inicial é tremendo, havendo pouco incentivo para entrada de novos atores. Qualquer tipo de auxílio estadual à implementação de novas empresas públicas seria certamente (ironicamente?) desaprovado pelas instituições comunitárias como “auxílio de Estado” com potencial para distorcer a concorrência. Em conclusão: a opção de simplesmente criar novas empresas e colocá-las a operar no mercado da produção e comercialização é pragmaticamente pouco fazível – o que, aliás, por si só, desmente grande parte da argumentação que tem sido utilizada para justificar a liberalização do setor.

Já quanto às atividades monopolistas, em particular o transporte e distribuição, seria também abstratamente possível constituir novas empresas para submeter propostas alternativas às dos operadores privados a concurso público, com o objetivo último de ser selecionadas para celebrar o contrato de concessão. Além de outras considerações que se possam fazer a este respeito, esta solução é desde logo insuficiente porquanto as concessões em vigor, pelo menos quanto ao transporte de eletricidade e gás e à distribuição de gás e eletricidade em alta tensão, só se extinguem por volta de 2050 – obviamente, a transição energética não pode esperar até lá.

Assim sendo, partindo do quadro legal existente, a criação de um serviço público de energia não será concretizável por via da criação de novas empresas públicas. Resta, por isso, a apropriação pública das empresas existentes.

A apropriação pública pode ocorrer, genericamente, por duas vias: a aquisição pública das empresas ou a respetiva nacionalização. No primeiro caso, o Estado iria ao mercado financeiro adquirir participações sociais das empresas visadas. No segundo caso, proceder-se-ia, por via legislativa, à transformação das empresas privadas em empresas públicas, passando-as para o domínio público. A compra coloca o Estado na posição de comprador “normal”, a atuar no mercado. Isto significa que: 1) a intenção de comprar não seria suficiente, sendo necessário que os atuais titulares das ações quisessem vender; 2) o preço seria fixado por negociação entre as partes, sendo necessariamente influenciado pelas dinâmicas mais alargadas do mercado financeiro e da cotação das empresas na bolsa; 3) a possibilidade de terceiros surgirem durante o processo negocial e apresentarem proposta mais elevada nunca estaria excluída. A este respeito, convém referir que, pretendendo o Estado adquirir uma percentagem de ações que lhe permita obter controlo sobre a empresa, provavelmente seria exigível o lançamento de uma “Oferta Pública de Aquisição” (OPA). Este é um processo altamente complexo e com tendência para ser demorado, exigindo a mobilização de significativos recursos.

Ao passo que a compra consiste num contrato celebrado entre duas partes em suposto pé de igualdade, a nacionalização é um ato unilateral do Estado, praticado no exercício da autoridade pública e em nome do interesse público. Aqui já não se trata unicamente de adquirir uma empresa, mas, mais do que isso, de alterar a estrutura da economia nacional, colocando uma dada empresa estratégica ao serviço do interesse da comunidade. Assim sendo, é um processo completamente diferente do processo de compra: 1) a nacionalização é determinada por Decreto-Lei do Governo, não dependendo, de modo algum, da vontade dos atuais acionistas; 2) a contrapartida pela nacionalização é uma indemnização, e não o preço definido pelo mercado, sendo o seu valor definido por peritos independentes; 3) a nacionalização gera, automaticamente, a dissolução dos órgãos sociais, devendo estes ser substituídos por novos órgãos, a nomear após a nacionalização; 4) o desenho da indemnização pode ser feito com alguma criatividade – o Tribunal Constitucional já admitiu a indemnização através da emissão de títulos da dívida pública (em vez do pagamento de um valor monetário), bem como a possibilidade de pagamento diferido no tempo, durante períodos mais ou menos alargados. Quanto à nacionalização, importa ainda dizer que a Lei das Nacionalizações prevê expressamente que todos os contratos de trabalho são mantidos e que os direitos dos trabalhadores devem ser respeitados no processo. Uma última nota a apontar sobre a nacionalização é o facto de ser necessária promulgação do Presidente da República, já que se trata de um Decreto-Lei do Governo. Ora, isso significa que o Presidente da República poderá vetar o diploma ou enviá-lo para o Tribunal Constitucional, levando dúvidas sobre a sua constitucionalidade.

Olhando para o regime jurídico associado a cada uma destas opções, pode afirmar-se que cada um cumpre um objetivo próprio e que é dessa diferença de base que resultam, em larga medida, as vantagens e desvantagens de cada uma. A compra e venda de ações é um contrato celebrado num contexto de mercado, sendo, por isso, um instrumento utilizado pelo Estado quando “despe” as suas vestes de autoridade pública, o que o coloca à mercê das dinâmicas da oferta/procura, quer quanto à disponibilidade para vender quer quanto ao preço. Esta via tem sido seguida sobretudo quando as empresas se encontram em dificuldades económicas e, por conseguinte, os acionistas estão mais disponíveis para vender a baixo preço. Nesses cenários, é uma opção relativamente aceite e que não suscita grande tensão social, uma vez que é vista como uma espécie de “resgate” – assim tem acontecido, ultimamente, na Alemanha. A nacionalização, por sua vez, é um ato tipicamente político, talhado para situações excecionais em que a salvaguarda do interesse público não pode ser alcançada de outra forma. Isto implica que esta via seja suscetível de gerar alguma tensão social, sendo apontado por alguns setores sociopolíticos como ideologicamente motivado. Contudo, um debate público bem sucedido também pode levar ao resultado oposto: o apoio à nacionalização como forma de preservar o interesse da comunidade. A sua vantagem evidente é a independência dos mercados, quer ao nível da própria decisão de nacionalizar, quer quanto ao montante indemnizatório. Aliás, o facto de a indemnização ser fixada por peritos e poder ser paga ao longo de um período alargado (e não de imediato) e/ou sob outras formas que não a indemnização em dinheiro pode promover o apoio popular, na medida em que o impacto nas contas públicas será inferior (se o processo for bem conduzido, claro). Quando se trata de constituir um serviço público de energia, com o objetivo último de viabilizar a transição energética necessária para enfrentar e superar a crise climática, a nacionalização parece ser o instrumento mais bem colocado – afinal, trata-se de um processo eminentemente político, cuja finalidade única é a proteção do interesse geral da comunidade num cenário de extraordinários desafios.

Chegados aqui, convém notar que este processo terá de multiplicar-se pelo número de empresas necessárias para (re)colocar sob controlo público todas as atividades do setor. Quanto às atividades monopolistas, a nacionalização incidirá, obviamente, sobre as empresas concessionárias. Quanto às atividades de mercado, há que selecionar as empresas a nacionalizar. Esta escolha poderá ser feita a partir de critérios relacionados com a história dos setores, com a quota-parte do mercado detida pelas empresas e com a titularidade das funções de “último recurso”. A distribuição de eletricidade em baixa tensão, recorde-se, é um caso excecional: a legislação vigente prevê a possibilidade de os municípios assumirem diretamente a gestão das redes de distribuição e a atividade de distribuição em baixa tensão. Uma vez que as anteriores concessões já terminaram e ainda não houve renovação dos contratos, seria interessante que os municípios assumissem diretamente a responsabilidade, gozando de legitimidade democrática local e da proximidade necessária aos utilizadores para melhor gerir a rede.

Conforme mencionado acima, a única exigência legal que resulta do Direito vigente – nacional e da UE – é a separação das atividades. Significa isto que, atualmente: 1) não é possível a fusão de todas as empresas nacionalizadas numa única empresa que assuma a totalidade das atividades do setor; 2) devem ser observadas as condições legais de separação entre atividades. Quanto a estas condições, destacam-se as seguintes:

  • Os operadores das redes não podem exercer controlo sobre empresas que desenvolvam atividades de produção ou comercialização, e vice-versa;
  • Os operadores das redes e qualquer um dos seus acionistas não podem designar membros do órgão de administração ou de fiscalização de empresas que exerçam atividades de produção ou comercialização, e vice-versa;
  • As pessoas que integram o órgão de administração ou de fiscalização dos operadores das redes estão impedidas de integrar órgãos sociais ou participar nas estruturas de empresas que exerçam a atividade de produção ou comercialização;
  • Os operadores das redes devem dispor de poder decisório efetivo e independente de outros intervenientes, devendo, para tal, dispor dos meios humanos, materiais, técnicos, económico-financeiros necessários;
  • Os operadores das redes de distribuição não podem deter participações no capital social de empresas que desenvolvem atividades de produção, transporte e comercialização;
  • Os operadores das redes de distribuição devem diferenciar a sua imagem e comunicação das restantes entidades a atuar no setor.

 

Uma nota final se impõe. Tudo o que ficou exposto pretende apresentar as possibilidades existentes de fazer retomar à esfera pública o setor energético, no quadro legal vigente. No entanto, o Direito está, e deve estar, em constante mutação. Num tempo de aguda emergência climática, provocada por um sistema destruidor que tem sido sustentado pelo Direito vigente, é uma obrigação moral imaginar novos horizontes jurídicos que possam alicerçar outro(s) sistema(s). Assim sendo, não nos podemos escusar de imaginar um serviço público de energia não constrangido pelas restrições atualmente resultantes do Direito da UE e do Direito nacional.

Num cenário ainda bem próximo do quadro existente, é possível conceber uma reconfiguração do quadro legal nacional que, respeitando o Direito da UE vigente, dá margem a maior integração das várias atividades da fileira energética. Nos setores monopolistas, a lei poderia permitir o exercício direto das atividades de transporte e distribuição pelo Estado (como, aliás, acontece com a distribuição de eletricidade em baixa tensão, suscetível de exercício direto pelos municípios). O exercício destas atividades por empresas (privadas ou públicas) através de um regime de concessão não é uma inevitabilidade, mas sim uma escolha. Além disso, poderia desenhar-se um modelo de separação entre atividades monopolistas e liberalizadas menos rígido. O modelo instituído entre nós é o mais exigente de entre as opções deixadas aos Estados pelo Direito da UE.

Indo mais longe, já pressupondo a revisão do Direito da UE, uma nova legislação para o setor poderia eliminar as obrigações de separação, abrindo caminho à (re)instituição de uma empresa verticalmente integrada, atuando ao longo de todo o setor, independentemente da manutenção, ou não, da liberalização das atividades permeáveis à concorrência.

Por fim, num plano ideal, que exigiria profunda reconstrução dos sistemas jurídicos, podemos imaginar a completa reformulação do setor energético com a finalidade de (re)instituir um verdadeiro serviço público. Tal implicaria, a reversão da liberalização do setor, fechando-o à concorrência de mercado, e a substituição dos preços por tarifas reguladas.

Independentemente do cenário em perspetiva, uma série de novas legislações complementares devem fazer parte do nosso imaginário futuro. Primeiro, as redes e infraestruturas devem passar a integrar o inventário geral do património do Estado, podendo essa classificação como bens do domínio público ser introduzida na própria Constituição, de modo a blindá-la contra futuras investidas de novos governos. Segundo, após o processo de nacionalização, deve ser criada legislação específica para garantir a participação dos trabalhadores da(s) empresa(s) energética(s) do Estado na gestão e planeamento do setor. Terceiro, é importante elaborar uma lei que desenvolva a declaração de emergência climática prevista na Lei de Bases do Clima. Esta deverá: 1) planear a extinção dos subsídios aos combustíveis fósseis, incluindo o gás fóssil; 2) proibir investimentos futuros em formas de energia que não sejam renováveis; 3) garantir uma transição energética justa, do ponto de vista social, territorial, geracional e cultural, prevendo instrumentos de planeamento para o efeito; 4) tornar legalmente obrigatória a reconversão de toda a atividade produtiva das empresas nacionalizadas em produção de fontes renováveis.

 

[1] Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre Investimento público em infraestruturas energéticas como parte da solução para os desafios climático (2022/C 486/10).

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