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Transição liderada pelas empresas: caso da central a carvão da EDP – Sinan Eden

Todos os governos marcaram o encerramento da Central Termoelétrica de Sines para depois dos seus mandatos, assim adiando qualquer possível preparação e evitando um planeamento. Depois, um dia, a administração da EDP decidiu que se devia fechar a central. Ninguém estava preparado menos “os mercados”. Anos e anos passaram numa inércia neoliberal, que resultaram num choque que toda a gente sabia que ia acontecer. Como chegámos aqui?

Se seguirmos um caminho de políticas climáticas compatíveis com travar a crise climática, vamos ter de encerrar, descarbonizar ou reconverter muito mais infraestruturas, particularmente na indústria energética. O que aconteceu na central termoelétrica de Sines que podia ter sido evitado? O que podia ter acontecido que não foi feito? Quem podia ter garantido um outro rumo, e como? Que planos existem agora para os ex-trabalhadores da ex-central? Que planos podemos exigir? Que lições podemos tirar como sociedade civil? Que reivindicações podemos ter para outras infraestruturas?

Este artigo extensivo tenta fazer um ponto de situação do encerramento da Central Termoelétrica de Sines em termos laborais, económicos e sociais, e apontar para lições para os próximos casos. Este artigo faz parte dum Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines que vai abordar outros temas e outras infraestruturas (existentes e planeadas) em artigos separados.

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§1. A história até 2019: No ano de 2019, havia duas centrais termoelétricas a carvão em Portugal: Sines, no Alentejo Litoral, e Pego, no Médio Tejo. O carvão, responsável por 11,7% das emissões de gases com efeito de estufa, forneceu 5,7% do consumo de energia primária. O carvão tinha fornecido 14,2% da energia em 2017 e 12,3% em 2018. Ou seja, o decrescimento foi visível. Nessa altura, a Central da EDP em Sines funcionava só alguns meses durante o ano, assegurando o abastecimento nas alturas de pico de procura. A EDP tinha deixado de fazer novos contratos para a central desde 2016. As empresas de subcontratação também estavam a reduzir os postos de trabalho.

Em outubro de 2019, o governo anunciou, contra o seu próprio programa eleitoral do mesmo ano, a antecipação do encerramento da Central Termoelétrica do Pego no final de 2021 e cessação da produção da Central de Sines em setembro de 2023.

Mas a história não ficou por aqui.

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§2. O mercado: Há histórias que se contam no universo neoliberal. As empresas dizem que recebem indicadores dos “mercados” e têm de obedecê-los para manter os seus negócios. Os governos dizem que só podem dar incentivos aos “mercados” e não são responsáveis pelas decisões das empresas. Esta estrutura de submissão e esta cultura de desresponsabilização obscurecem as escolhas, as decisões e as indecisões feitas ao longo dos processos.

A EDP recebeu três sinais ao longo de anos. O primeiro sinal foi o das mobilizações pela justiça climática que tiraram a legitimidade social do carvão. Uma consequência imediata foi a antecipação do encerramento da central pelo governo. Uma outra, mais subtil, foi que a EDP já não podia pintar-se de verde e de renováveis, enquanto mantinha a central que sozinha emitia aproximadamente 10% das emissões nacionais.

O segundo sinal foi a COVID-19: a redução drástica de consumo energético por um curto período de tempo e a fuga de investimento dos combustíveis fósseis em geral. Combinado com o declínio gradual do carvão, isto implicou uma queda na produção energética.

O terceiro sinal foi talvez o mais decisivo. Em dezembro de 2019 foi divulgado o Pacto Ecológico Europeu e em janeiro de 2020 a Comissão Europeia lançou o Fundo para uma Transição Justa. Este fundo depois misturou-se com os fundos de recuperação da COVID-19.

O “mercado”, ou seja, os patrões da EDP, perceberam então que a central era para fechar o mais rápido possível para conseguir concorrer aos fundos europeus. E foi isso que fizeram.

Em julho de 2020 a EDP anunciou o encerramento da central em dezembro do mesmo ano. Os trabalhadores subcontratados receberam a notícia da mesma forma que todas as outras pessoas: via comunicação social.

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§3. Trabalhadores da central: A central tinha um total de 328 trabalhadores regulares, baseados maioritariamente em Sines (52%) e Santiago de Cacém (41%), dos quais 109 pertenciam aos quadros da EDP e 219 trabalhavam para empresas prestadoras de serviços.

As maiores fatias são de operadores de máquinas e instalações (106 trabalhadores) e operários de ofício (61 trabalhadores).

Nas áreas técnicas de operação e manutenção, três empresas integravam 80,9% da força laboral. Na produção estavam 119 trabalhadores (51 na EDP Produção e 68 na Zilmo), na manutenção estavam 84 (41 na EDP Produção e 43 na MCS) e nas limpezas industriais a Resposta Assertiva empregava 31 trabalhadores.

Os quadros da EDP têm 78,8% dos trabalhadores com licenciatura e 55,2% dos trabalhadores com o ensino secundário.

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§4. O que aconteceu no encerramento? O Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) encomendou um estudo a investigadores do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa sobre “requalificação e identificação de oportunidade de empregos dos trabalhadores afetados pelo fim da produção de eletricidade a partir de carvão nas centrais do Pego e de Sines”. Este estudo encontrou e compilou bastantes dados sobre o Pego, mas a informação sobre Sines é incompleta.

Isto porque a transição foi feita pelo “mercado”. Em outras palavras, o planeamento não foi um processo social, mas só um processo empresarial económico.

Passamos a citar do estudo:

No caso de Sines, apesar de tentativas recorrentes de contacto, a EDP não disponibilizou quaisquer dados. Como alternativa, recorreu-se aos dados disponibilizados pelo SIEAP – Sindicato das Indústrias, Energia e Águas de Portugal, tendo sido cruzados para validação com os dados recolhidos no IEFP, e os dados de uma das empresas prestadoras de serviços da Central Termoelétrica de Sines.

A equipa viu-se, de facto, confrontada com dificuldades no acesso a determinados atores chave, nomeadamente à EDP e às entidades responsáveis pelo acompanhamento dos investimentos e decisões relativas à transição energética, o que condicionou a concretização do plano de trabalhos previsto, em concreto os relativos aos Balanços Sociais ou informação oficial do número de trabalhadores na central de Sines. Mas o mais importante é que, pelo menos em parte, as dificuldades estavam longe de decorrer da própria natureza complexa e exigente de recolha de informação. Na verdade, o processo envolveu matérias de grande sensibilidade política e empresarial associadas aos novos investimentos e às negociações que ainda decorrem, e cuja informação estará, por isso, ainda muito reservada.”

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§5. O que aconteceu aos trabalhadores? A EDP reuniu com cada trabalhador empregado diretamente pela empresa e fez acordos separados. A lista das possibilidades mencionadas são recolocação noutra instalação, transição para a reforma e rescisão por mútuo acordo. Estamos a falar de mais de 100 trabalhadores, todos com mais de 40 anos e com uma média de idade nos 57, altamente qualificados, apesar das muitas competências adquiridas no trabalho poderem não ter sito formalizadas. A maioria optou por reforma antecipada e alguns (22 trabalhadores) foram recolocados.

Por outro lado, a EDP criou um gabinete para acompanhar os trabalhadores, uma espécie de balcão de inscrição no local para os serviços de emprego. Das 71 pessoas acompanhadas por este gabinete, 37% encontrou emprego e 42% está em formação. Outros 50 a 60 trabalhadores ainda se mantêm na central para executar o descomissionamento.

Há mais informação agregada pelo IEFP em relação às empresas prestadoras de serviço. Estão a ser acompanhados um total de 128 candidatos (66 da Zilmo, 30 da MCS, 8 da Transportadora Sousa Mendes, e 24 da Resposta Assertiva). Os motivos de despedimento declarados são despedimento coletivo (67 pessoas, 57,8% do total), extinção de empresa (29 pessoas, 22,8% do total) e fim de contrato a termo (21 pessoas, 16,5% do total).

Aproximadamente 50% destas pessoas foram ou estão a ser colocadas em outros empregos, e 30% foram reencaminhadas para os processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) para validar e certificar as suas competências adquiridas.

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§6. O que vai acontecer aos trabalhadores? Nada. Em outras palavras, vão entrar no “mercado laboral”. Em outras palavras, as empresas planearam a transição dos seus negócios e só essa.

O governo está a atender aos sintomas dum ferido que deixou a EDP causar e a ignorar a sua responsabilidade na falta de preparação. Os ex-trabalhadores estão em subsídio de desemprego, a ser atendidos pelo IEFP, a receber formação profissional e a procurar novo emprego… como qualquer outro desempregado em qualquer outra parte do país.

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§7. O que podia acontecer aos trabalhadores: Na prática internacional, existem três vias gerais para encerramento de infraestruturas.

A primeira opção é o phase-out (encerramento faseado), que é simplesmente fechar a infraestrutura e acompanhar os trabalhadores. Isto inclui compensações e requalificação, com cuidado específico à mobilidade geográfica e à idade dos trabalhadores. Pode haver reformas antecipadas e formalização de compensações. O phase-out é a opção comum nas zonas isoladas com pouca atividade económica para além da infraestrutura em causa, por exemplo nas minas de carvão ou nos poços de petróleo no mar.

A segunda opção é a reconversão, ou seja, transformar a infraestrutura existente numa outra infraestrutura. Isto funciona no caso da descarbonização das fábricas, por exemplo. Eletrificando a transformação assegurada pela queima de combustíveis fósseis ou mudando os processos industriais que resultam em emissões, uma infraestrutura pode manter a sua atividade e os seus trabalhadores.

A terceira opção é a diversificação económica. Quando há uma grande comunidade dependente duma indústria e com pouca mobilidade geográfica, um processo de phase-out é acompanhado pela abertura de outras infraestruturas que podem criar novos postos de trabalho. Os trabalhadores da infraestrutura em encerramento devem ser então acompanhados para requalificação, subsídios e garantia de emprego, tendo particular atenção à idade e às competências existentes.

O discurso do governo e das empresas é como se estivesse a seguir a terceira opção (diversificação económica), mas a prática na verdade corresponde à primeira (phase-out) e mesmo essa foi mal feita.

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§8. O que vai acontecer à ex-central: Existem pelo menos três cenários de médio e longo prazo que são apresentados como diversificação económica.

O mais falado é o de hidrogénio verde, ou seja, hidrogénio produzido a partir das fontes renováveis. Existem vários projetos em Sines que incluem produção, transformação e armazenamento e que estão interligados com a/ligados à produção energética. A EDP e a Galp estão bastante ativas neste tema e existe também um memorando de entendimento entre Portugal e os Países Baixos para exportação.1

Em paralelo, a Cercal Power está a instalar 500 mil painéis fotovoltaicos em Cercal o Alentejo, Santiago do Cacém.

O hidrogénio e os projetos de energia solar merecem um foco específico e vão ser abordados em artigos separados. Basta dizer que no contexto da Central Termoelétrica de Sines nenhum destes projetos tem neste momento uma cláusula que obriga as empresas a darem prioridade aos trabalhadores da indústria de combustíveis fósseis.

Por outro lado, diretamente ligada à central, a Start Campus está a desenvolver um projeto de megacentro de dados em Sines, chamado Sines 4.0. A empresa diz que quer utilizar os terrenos contíguos da antiga central para montar painéis fotovoltaicos para alimentar o centro de dados.

Em todos estes três cenários, as empresas falam de centenas de milhões de euros de investimento e milhares de empregos criados, sempre enquadrados como transição energética na região.

Contudo, não existe uma ligação contratual entre o encerramento da central e estes projetos. Portanto, os trabalhadores e a comunidade local estão a encarar este processo como uma “transição” ao desemprego e não como uma transição energética (sem falar duma transição energética justa).

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§9. O que ainda pode acontecer à central e aos ex-trabalhadores: Neste momento, todos os atores (o governo, as empresas, a sociedade civil, os trabalhadores e a comunidade) estão a abordar o encerramento como algo que já foi e, portanto, todos estão focados em mitigar os impactos. Para os trabalhadores e a comunidade que estão ansiosas, não só sobre o seu futuro mas também sobre o seu presente, isto é válido e necessário. Mas o mesmo princípio aplicado ao governo e às empresas serve para esconder as escolhas que estes mesmos ainda estão a fazer sobre o encerramento.

Por um lado, a Lei de Bases do Clima, aprovada pela Assembleia de República em novembro de 2021, e em vigor desde fevereiro de 2022, proíbe a utilização de carvão para produção de energia elétrica a partir de 2021. Ou seja, a central é para ficar fechada para sempre.

Por outro lado, a EDP decidiu fechar a central antecipadamente e não compensar os trabalhadores. A EDP (e na verdade qualquer empresa que presta serviços na central) podia perfeitamente continuar a pagar salários completos até 2023 (data de encerramento marcado) e dar ou financiar a formação dos trabalhadores até a essa data. Isto foi uma escolha, particularmente marcante para a EDP que distribuiu lucros de 700 milhões de euros em dividendos em 2020 em plena pandemia e 750 milhões de euros em 2021.

E o governo aceitou esta situação em vez de responsabilizar as empresas. No final do dia, a EDP é uma empresa de combustíveis fósseis que alimentou a crise climática durante décadas mesmo havendo um consenso científico sobre a urgência de ação. Uma forma humilde de responsabilizá-la por este crime contra a humanidade seria garantir que seja a empresa a pagar os custos desta transição em vez de serem os trabalhadores, as comunidades e os serviços sociais do Estado. Não fazer isto foi uma decisão do governo.

Uma intervenção a curto prazo para instituir um processo de transição justa para a Central Termoelétrica de Sines é possível e não está a ser feita por decisão das empresas e dos governos.

E isto não é por o encerramento ser uma “surpresa” para eles. Há mais infraestruturas por fechar e estas também não estão a ser preparadas.

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§10. Princípios por uma transição justa:

Partimos da observação de que foram os governos, as empresas e o modelo socioeconómico dominante que nos trouxeram à beira do abismo do colapso climático ao longo de décadas em negação. Por isso, a experiência mostra-nos que uma transição compatível com a ciência climática só pode ser liderada pela sociedade civil, pelas populações e pelos trabalhadores.

Uma transição justa deve transitar dum ponto para um outro ponto e por isso o percurso deve ser desenhado e planeado com antecedência. É preciso uma preparação prévia, particularmente em relação ao diagnóstico de necessidades de competências e ao investimento em qualificações em cada região.

O termo transição justa surgiu do movimento laboral e foi integrado no Acordo de Paris. Contudo, neste momento, ainda não é claro o que o governo português quer dizer em concreto quando fala de transição justa. Isto é uma fraqueza porque em cada caso está-se a definir um novo procedimento, mas também é uma força porque ainda podemos dar-lhe conteúdo que visa justiça social e climática.

Um outro princípio de justiça climática é garantir que sejam as empresas poluentes que paguem os custos da transição, sejam estas compensações aos trabalhadores ou formações profissionais.

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§11. Reivindicações por uma transição justa: Há muitos elementos essenciais numa transição justa e este artigo não se atreve a fazer uma lista completa deles. Queremos só mencionar algumas reivindicações concretas que o movimento pela justiça climática e o movimento sindical construíram nos últimos anos.

A lista das infraestruturas com emissões de gases com efeito de estufa é uma lista pública. Já se sabe onde são, quantas pessoas trabalham lá e que perspetivas de descarbonização existem (phase-out, reconversão ou diversificação económica). Duma forma ou doutra, todas estas infraestruturas vão entrar numa transição climática. Todas as pessoas que trabalham nestas infraestruturas devem ser então preparadas a partir de ontem. Nomeadamente, algumas reivindicações imediatas, em vez de esperar pelos prazos de encerramento, seriam:

  • levantamento das competências e necessidades por empresa, tendo em conta os potenciais de transição em cada região,

  • valorização e certificação das competências,

  • formação profissional em Empregos para o Clima que comece agora e que abranja todos os trabalhadores,

  • inclusão de cláusulas nos leilões de energias renováveis que obriguem a empregar os trabalhadores da indústria de combustíveis fósseis.

Para o processo do encerramento em si, algumas reivindicações seriam:

  • responsabilização da empresa para os custos da transição,

  • salário completo até ao novo emprego,

  • compensações que correspondem às necessidades específicas, nomeadamente subsídio de emprego mais prolongado para trabalhadores mais velhos e apoio à mobilidade geográfica no caso das regiões com baixa diversidade económica,

  • prioridade de emprego nos novos postos de trabalho na área.

Abrangendo toda esta luta está a reivindicação de criação de 200 mil Empregos para o Clima no setor público para cortar as emissões, dirigindo a transição energética duma forma planeada e democrática.

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Referências

Para além das notícias referidas diretamente no texto, estes dois relatórios serviram como fonte principal para as informações empíricas neste estudo.

Portugal 2021 Energy Policy Review,

International Energy Agency,

Junho de 2021,

212 páginas

Estudo de Requalificação e Identificação de Oportunidade de Emprego dos Trabalhadores afetados pelo fim da Produção de Eletricidade a partir de Carvão nas Centrais do Pego e de Sines,

Equipa: Luís Capucha (Coordenador), Alexandre Calado, Gonçalo Marçal, Teresa Evaristo,

Setembro de 2021,

196 páginas

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1 Existem mais ideias em circulação.

Há uma menção em passagem de utilizar os terrenos da central para produção de hidrogénio, o que nos levava à segunda opção (reconversão), mas por enquanto não há algo concreto neste sentido.

A Agência Nacional para a Qualificação e Ensino Profissional criou um grupo de trabalho em colaboração com a Associação Portuguesa para o Hidrogénio para definir os referenciais de qualificação para os trabalhadores, mas este ainda não teve consequências práticas.

2 comentários em “Transição liderada pelas empresas: caso da central a carvão da EDP – Sinan Eden”

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