§1. Uma transição justa para melhorar as condições de trabalho: Quando falamos duma transição justa e rápida, temos que considerar que atualmente temos um setor energético sob controlo de empresas privadas multinacionais em que as condições de trabalho têm piorado sistematicamente nas últimas décadas. Os novos funcionários não têm sido incluídos nos contratos coletivos. Muitos dos serviços foram entregues às empresas de prestação de serviços, inclusive operações diretamente ligadas às atividades principais. Os salários não acompanharam o aumento dos preços. Nas empresas que a produção foi reduzida, houve perda de empregos ou acordos de reforma antecipada que fizeram os trabalhadores perder os seus rendimentos e direitos.
Estas são algumas das razões sociais pela qual a campanha Empregos para o Clima exige um setor público a liderar a transição energética. Aspiramos uma economia que prioriza o bem-estar das pessoas e do planeta. Nesse sentido, as reivindicações da campanha são sempre baseadas em melhorar as condições laborais: quem neste momento trabalha nas indústrias poluentes deve não só não perder o seu rendimento e os seus direitos, mas na verdade deve ter um emprego melhor com uma transição justa.
§2. Novos desafios para emprego digno: Com a precariedade estabelecida, as parcerias público privadas e as empresas de outsourcing, é bastante fácil imaginar melhor condições de trabalho do que agora, e os sindicatos têm tido reivindicações bem claras e detalhadas neste sentido.
Um forte setor público, seja com nacionalizações, com municipalizações, ou com criação de novas empresas públicas, terá de fazer parte da solução.
Contudo, há áreas que ficam no ponto cego. Estas são áreas em que a digitalização ou a descentralização do trabalho têm colocado novos desafios, porque nestas áreas não houve um setor público prévio de onde podemos tirar lições.
Neste artigo, vamos focar-nos na mobilidade partilhada como exemplo.
§3. Mobilidade partilhada: O relatório da campanha Empregos para Clima desenha uma estratégia de descarbonização para o setor de transportes em Portugal. O plano passa por, em ordem de importância estrutural:
dentro das cidades: ferrovia ligeira, autocarros elétricos, mobilidade partilhada
intercidades: ferrovia pesada, autocarros elétricos, mobilidade partilhada.[1]
Sabemos como criar emprego digno na ferrovia e nas empresas dos autocarros. Na ferrovia, ligeira e pesada, as reivindicações para melhorar as condições de trabalho já são bem-estabelecidas. A rodoviária nacional é fragmentada, e a campanha propõe criação duma empresa pública de autocarros elétricos para mitigar as falhas de serviço.
As perguntas que se levanta são: o que seria mobilidade partilhada neste contexto, como seriam os empregos e como podemos garantir condições dignas para os trabalhadores?
§4. O papel da mobilidade partilhada na descarbonização:[2] Em muitos casos, um autocarro não é adequado para complementar o primeiro ou último quilómetros da mobilidade urbana. Isto porque a necessidade real não justifica um autocarro alocado para essa linha. Nestes casos, sistemas de mobilidade partilhada podem ser uma alternativa.
Insistimos em usar o termo “mobilidade partilhada” (“shared mobility”, ou “ride-sharing”, ou “trip-sharing”, em inglês), que se refere a viagens verdadeiramente partilhadas entre indivíduos diferentes que pagam separadamente. Em contraste, o termo “ride-hailing” refere-se a qualquer sistema baseado nas aplicações de telemóvel para assegurar uma viagem de táxi ou outro serviço “on-demand” por uma empresa de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica (TVDE). Estas viagens podem ou não ser partilhadas. Os serviços de ride-hailing não são mobilidade partilhada a não ser que ofereçam exclusivamente viagens partilhadas (como um sistema de autocarros de micro trânsito).
Os sistemas de ride-hailing monopolizaram as viagens de curta distância e nas alturas em que a procura para transportes é baixa. Estes sistemas dominaram também a força de trabalho, com condições extremamente precárias.[3]
Estas plataformas baseadas nas aplicações de telemóveis trouxeram duas peças-chave para criar um sistema público complementar de mobilidade partilhada nas cidades. A primeira são os meta-dados sobre as necessidades. Apesar dos serviços “on–demand” distorcerem as necessidades reais até a um certo ponto, a informação sobre o número de viagens entre dois pontos a cada hora de cada dia é essencial para estabelecer opções eficientes de mobilidade partilhada. A segunda peça é o próprio algoritmo da aplicação, no qual não só a autoridade dos transportes mas também os usuários podem introduzir constrangimentos e necessidades. Claramente, os algoritmos das apps actuais são desenhados para fins lucrativos e portanto devem ser reescritos para garantir anonimato dos usuários e criar responsabilidade via programação de código aberto.
Ambas estas peças são de propriedade privada, no momento. A propriedade pública desta informação pode abrir as portas para um sistema de mobilidade verdadeiramente integrado, transformando os sistemas de ride-sharing em sistemas de mobilidade partilhada que complementam os comboios e os autocarros, produzem empregos dignos e locais, e reduzem o uso de transporte individual.
§5. Emprego digno na mobilidade partilhada: Neste momento, em maioria dos casos, as plataformas digitais desresponsabilizam as empresas e colocam todas as responsabilidades nos trabalhadores.
§5.1. Em muitos casos os trabalhadores são considerados como trabalhador por conta própria, o que significa que a empresa deixa de necessitar dum departamento de recursos humanos. Pagamentos de segurança social, pagamentos de impostos, marcação de férias, os direitos parentais, direito ao subsídio de desemprego e a gestão dos horários laborais ficam todos no lado do trabalhador, o que causa stress, sobrecarga e burnout.
Uma empresa pública de mobilidade partilhada devia contratar trabalhadores e assumir a responsabilidade de garantir uma separação clara entre tempo de trabalho e tempo de descanso. O trabalhador tem direito a desconectar-se do trabalho, algo que é impossível no contexto atual das plataformas digitais de prestação de serviços.
Será preciso marcar horários em que a flexibilidade esteja no lado da empresa e não no lado do trabalhador. Os algoritmos das apps existentes vão ajudar a organizar esta parte.
Em todos os casos, o serviço “on-demand” (um serviço sempre disponível no momento em que é pedido) vai ter de desaparecer quase por completo. Num setor de transportes com zero emissões, não será possível ter acesso a um carro tão rápido como é ter acesso a uma ambulância.
§5.2. Devemos também reconhecer que haverá linhas em que a procura será muito baixa (entre uma aldeia e uma vila, por exemplo). Nestes casos, a mobilidade partilhada pode ser dirigida por car-pooling (partilha de carros), um modelo já bastante avançado com as bicicletas em várias cidades portuguesas. O emprego neste caso estaria na manutenção, e talvez não será necessário um trabalho a tempo inteiro.
Nesse sentido, a empresa de mobilidade partilhada deve preparar contratos para 10 horas, 20 horas ou 30 horas semanais.[4]
§5.3. Um problema muitas vezes esquecido é segurança e saúde no trabalho (SST).
Os riscos psicossociais – stresse, assédio e burnout – são, juntamente com as lesões músculo esqueléticas, a maior causa de doença e absentismo na Europa.
Neste momento, nenhum departamento das empresas das plataformas digitais é responsável por monitorizar regularmente as condições de trabalho. As cadeiras do carro devem ser confortáveis. O telemóvel do trabalhador – um elemento essencial para executar o seu trabalho – deve estar atualizado e em boas condições. (Se o telemóvel cair no chão e partir a ecrã, isto seria da responsabilidade da empresa como qualquer outro acidente no local de trabalho.) Se houver um assédio, o trabalhador deve ter acesso ao apoio psicológico gratuito. O trabalhador deve ter pausas regulares registadas e pagas. O trabalhador deve ter acesso à comida saudável.
Atualmente, o problema por resolver tem duas camadas: monitorização e responsabilização. Por um lado, é exigido que o trabalhador resolva estes assuntos por si. Por outro lado, o trabalhador não recebe sequer formação sobre como analisar, avaliar e diagnosticar estes assuntos. Numa mobilidade partilhada digna, temos de reverter a situação nas ambas camadas.
§6. Implicações em outros setores: A maioria dos problemas que identificamos acima se aplicam igualmente a qualquer trabalho descentralizado. Já sabemos que as empresas, em particular as pequenas e médias, consideram que a prevenção (dos riscos psicossociais) é um custo desnecessário demasiado elevado. Quando falamos sobre cooperativas de energias renováveis, a situação objetiva é que será impossível para essas garantirem uma monitorização decente das condições da segurança e saúde no trabalho. Nesse caso, uma possível solução passaria na criação duma confederação das cooperativas para terem trabalhadores suficientes para contratar responsáveis da SST. Uma situação semelhante acontece nas práticas de agroecologia que por definição resultam em descentralização da produção.
Décadas de experiência mostra que a monitorização por entidades exteriores às empresas é essencial mas não é suficiente. É preciso ter um departamento dedicado à SST, inserido na realidade dos trabalhadores e observa regularmente as condições de trabalho para conseguir propor soluções e melhoramentos.
§7. Os pontos assinalados acima devem ser tidos em consideração, mas de certeza faltam elementos essenciais neste artigo. Em qualquer caso, emprego digno (na mobilidade partilhada ou nos outros setores) não tem uma receita fixa aplicável em todos os casos. Uma das garantias de boas condições de trabalho é a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Por isso, um dos parâmetros de emprego digno defendido pela campanha Empregos para o Clima é a relação do emprego à sindicalização: os trabalhadores dos empregos para o clima devem ter acesso imediato aos sindicatos duma forma estrutural e direto. A mobilidade partilhada (e a forma em que ela está montada neste momento) coloca desafios neste sentido que não podem ser resolvidos por uma simples nacionalização.
[1]Neste artigo vamos focar-nos no transporte dos passageiros. Um argumento paralelo é possível para o transporte das mercadorias, mas torna-se provavelmente menos relacionável para o público.
[2]Este parágrafo foi tirado da secção 7.3 do artigo “Um sector de transportes em Portugal com zero emissões”, aqui: https://www.empregos-clima.pt/um-sector-de-transportes-em-portugal-com-zero-emissoes-sinan-eden/
[3]Um relatório identificou que na Cidade de Nova Iorque, noventa e nove porcento dos condutores dos TVDEs são imigrantes e para dois terços dos condutores conduzir é o seu único emprego.
[4]Não consideramos opções com mais horas porque a campanha defende uma redução do trabalho para 32 horas semanais para todos os setores: http://empregos-clima.pt/por-onde-comecar/9-trinta-e-duas-horas-semanais/