O setor dos transportes é responsável por 28% das emissões anuais de gases com efeito de estufa em Portugal. A esmagadora maioria das emissões dos transportes vêm da rodovia (principalmente carros e camiões), representando cerca de 70% do total. Eletrificar todos esses veículos não leva a um corte necessário de emissões, em parte pela sobrecarga colocada num sistema de produção de energia ainda não 100% renovável, mas também pela necessidade de extração de materiais sua transformação necessária para substituir os cerca de 7 milhões de veículos rodoviários motorizados nas estradas portuguesas.
É necessário cortar na procura de energia pela utilização em grande escala de transportes públicos e coletivos, substituindo a maior parte da mobilidade rodoviária por ferroviária, e eletrificar só a restante procura de energia do setor. Para realizar tal tarefa, é necessária uma estratégia e uma planificação dos investimentos num nível não observado em Portugal. A campanha Empregos Para o Clima prevê que os custos de infraestrutura necessários seriam aproximadamente 20 mil milhões de euros por ano (8,6% do PIB) ao longo de 10 anos. O Programa Nacional de Investimentos 2030 prevê 10 mil milhões alocados a projetos ligados à ferrovia e 5,8 mil milhões em transportes públicos por uma extensão de 10 anos, um investimento que só corresponde a 7,5% do necessário.
O modelo de mobilidade para as cidades deve ser uma adaptação do modelo nacional, com o seu corpo principal feito de ferrovia ligeira, rodeado por transporte rodoviário público, coletivo e elétrico. Uma rede extensiva, intermunicipal e integrada de metro e elétricos é o nosso ponto de partida nas grandes cidades, à qual se devem acrescentar autocarros elétricos e opções públicas de mobilidade partilhada, complementadas ainda por opções mais leves como bicicletas e viagens a pé.
Para uma cidade como Sines é necessário investimento em circuitos elétricos que permitam às pessoas deslocarem-se dentro da cidade e para as cidades próximas para ser possível reduzir a necessidade da propriedade e do uso de um carro. Acompanhado por planeamento urbano, este pode aumentar as possibilidades para os modos de transportes de zero energia. Isto só é possível quando as cidades são desenhadas não para os carros mas para as pessoas, que por sua vez é possível quando os carros não são uma necessidade essencial para a mobilidade. É também necessária a criação de uma ligação de comboio para passageiros para tornar as viagens de longa distância mais económicas, práticas e amigas do ambiente.
Sem esta mudança na maneira como nos transportamos, continuaremos presos à retórica do capitalismo fóssil da necessidade da manutenção da infraestrutura fóssil mais poluente do país, a refinaria da Galp, em Sines. Defendemos uma transição justa para os seus trabalhadores, e para todos os trabalhadores das indústrias poluentes, sabendo que o futuro que desejamos tem mais trabalhos, e não menos, e que esses trabalhos serão mais dignos, seguros e respeitarão os limites impostos pelo planeta.
Este artigo pretende evidenciar a importância do investimento em transportes públicos eletrificados para a descarbonização do concelho de Sines e do país, fazendo parte de um Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines, que vai abordar outros temas e infraestruturas (existentes e planeadas) em artigos separados.
Transporte de passageiros em Sines
Transportes públicos intra-concelho
Atualmente, longe das grandes cidades, os carros não só são uma necessidade, mas também uma obrigação para todos os tipos de viagens. Nas grandes cidades, cerca de 30% das viagens em carros são para o local de trabalho, 20% para as compras e 15% para acompanhar familiares (como levar crianças à escola). Estas proporções devem manter-se em localizações sem uma rede de transportes públicos adequada. Enquanto as entregas domiciliárias reduzem a necessidade de transporte de passageiros, algo explicado em mais detalhe neste artigo, empresas públicas de pequenos autocarros e opções públicas de mobilidade partilhada podem reduzir ainda a necessidade de carros individuais para estradas menos usadas.
A necessidade de uma rede pública de transportes que colmate as necessidades de transportes intra-concelho são evidenciadas ao olhar para as estatísticas associadas a transportes motorizados. Em 2016, 81% de todas as viagens de carro eram dentro do concelho, 11% para concelhos do Alentejo Litoral e apenas 8% para fora deste.
A cidade de Sines dispõe, desde 2005, de um circuito de transporte urbano explorado diretamente pelo município que estabelece um circuito com origem e fim na Zona Industrial e Logística (ZIL2) e que assegura a ligação aos principais serviços públicos e equipamentos coletivos da cidade. Este serviço funciona em dias úteis, entre as 7h00 às 20h00, e é assegurado em minibus da autarquia e tem uma frequência de uma circulação/hora. O custo por bilhete é de 50 cêntimos (metade do preço para jovens e idosos). O passe custa 13 euros por mês (metade do preço para jovens e idosos). Este serviço de transportes tem cerca de de 30000 utilizadores anuais.
Em 2016, o município pretendia reforçar o serviço ao fazer o percurso no sentido oposto, aumentando a frequência de circulação para um autocarro por meia hora e aumentando a flexibilidade do serviço; essa proposta era um aumento significativo da qualidade de transporte público, mas não aconteceu, o que significa que não existem opções reais para transportes públicos dentro de Sines. É necessário eletrificar a frota de minibuses usada e criar, pelo menos, esta expansão da linha.
Para zonas com menos densidade populacional, uma rede de transportes flexíveis, como descrito no Plano de Mobilidade Urbana Sustentável do Alentejo Litoral (PMUSAL), reduziria drasticamente a necessidade de usar carros na região. Esta rede consistiria num hibrido entre transportes publicos que circulam num percurso fixo e entre transportes on-demand que permitiriam a pessoas ligar-se ao serviço desviando o percurso fixo do autocarro e transportando-as para onde desejam. Novos tipos de transporte coletivo e partilhado são necessários para a descarbonização dos transportes.
Até certo ponto, os carros podem continuar a ser necessários. Contudo, temos de diminuir drasticamente a necessidade dos mesmos e todos os carros que restam devem ser elétricos. Nas cidades, isto é uma enorme oportunidade para transformar empregos no setor privado em empregos municipais dignos e seguros, porque os postos de carregamento estarão ligados aos terminais de autocarros e aos parques de estacionamento. Ainda mais, este processo permite descentralizar a produção elétrica: em vez de trazer petróleo importado e refinado para as cidades, a eletricidade pode ser produzida no local.
Transportes públicos extra-conselho
Em 1974, existia uma linha de comboio de passageiros que vinha até Sines, mas, em 1986, já era só de cargas e continua a sê-lo em 2022. Existem, no Plano Nacional de Investimentos 2030, projetos de expansão das linhas de cargas e a criação de linha de passageiros eletrificada partido de Sines e ligando a Grândola Norte. Este trajeto permitiria a ligação com a linha do Sul, permitindo viagens de comboio entre Sines e o resto do Alentejo Litoral. Existem também discussões sobre a introdução de uma linha de passageiros que ligue Ermidas-Sado, Santiago do Cacém e Sines, um projeto que estima “que possam estar reunidas as condições para a sua efetivação no horizonte de 2 anos”.
No entanto, a ligação de Sines à linha do Sul pode ser o fim do projeto da melhoria de ligações ferroviárias no Alentejo Litoral. Como já indicado no PMUSAL, em 2017, a não existência de serviços regionais ou inter-regional que permita o transporte ferroviário de passageiros dentro do Alentejo Litoral limita drasticamente a utilização destas linhas pela população local, havendo a sugestão de restabelecimento da linha entre Setúbal e Tunes com paragens em todos os apeadeiros do Alentejo Litoral.
Complementando a rede nacional de transportes ferroviários, é necessária uma empresa pública complexa que combine autocarros elétricos, mobilidade partilhada e meios mais leves de transporte, que garanta as outras necessidades de transporte entre concelhos vizinhos.
Ferrovia nacional
Como discutido acima, um passo fundamental para a descarbonização do setor dos transportes é a construção de uma rede ferroviária extensiva e eletrificada. Quando comparamos a nossa rede com as de outros países europeus, é possível reparar que, apesar de ter uma taxa de eletrificação acima da média, com uma taxa de eletrificação de cerca de 67%. No entanto, a densidade da nossa rede é abaixo da média, quer em termos de área (2,8 km de via por 100 km2) quer de população (2,5 km de via por 10.000 Hab), como seria de esperar depois de um desmantelamento constante da nossa via férrea, tendo a extensão diminuído cerca de 30% desde 1969, quando existiam 3592 km de linha explorada versus os 2526 explorados atualmente. Para além disso, verifica-se que Portugal regista uma menor intensidade de utilização (39 Ckm/km/dia) do que a média, este indicador podendo ser interpretado como o número médio de comboios que passaram, por dia, em cada km de linha, o que sublinha a baixa disponibilidade de comboios quando comparado com a média europeia. Para colmatar estas falhas e construir uma rede ferroviária que possa realmente suprir as necessidades das populações, é necessário:
- eletrificar e modernizar toda as linhas existentes;
- construir linhas de alta velocidade nos eixos Norte-Sul (Valença a Faro) e Oeste-Leste (Lisboa a Madrid);
- reativar e eletrificar as linhas abandonadas e construir novas;
- reorganizar os portos e as zonas industriais para permitir hubs logísticos de comboio
- construir novas estações de comboio;
- produzir ou adquirir locomotivas e vagões (para passageiros e para mercadorias) e construir caminho de ferro.
As necessidades sublinhadas acima não são as únicas que devem ser endereçadas, sendo necessário um estudo que capture todas as necessidades da ferrovia portuguesa que não podem ser referidas neste artigo, mas servem de base de reivindicação para qualquer plano que procure construir uma rede pública de ferrovia que tornaria possível reduzir completamente o transporte rodoviário e a aviação civil de longo curso dentro do país e da Península Ibérica, e substituir todo o transporte de longo curso de mercadorias, deixando só o primeiro e o último quilómetro para camiões relativamente pequenos (e, portanto, eletrificáveis). Sobre o transporte de mercadorias, olharemos mais em detalhe nos próximos capítulos.
Transporte de mercadorias
Como referido na contextualização sobre Sines, este município é responsável por 78% das exportações e de 90% das importações do Alentejo Litoral. A sua economia é muito dependente das indústrias transformadoras e dos serviços de transportes, que representam, respetivamente, cerca de 20% e 50% do valor bruto acrescentado dentro do conselho. Esses números são explicados pela existência do Porto de Sines e refinarias existentes e qualquer tentativa de descarbonização dos transportes em Sines tem também que passar pela reorganização dos transportes de mercadorias.
O transporte ferroviário representava, em 2017, 15% de toda a carga movimentada no porto de Sines, e o transporte rodoviário apenas 4%. Isso significa que 81% da carga que chegava no porto é transbordada para outros navios e segue viagem desse modo. Essa figura ainda se mantém atual. Isso é feito porque as viagens marítimas são muito mais baratas do que a ferrovia para longas distâncias, principalmente porque não existe nenhuma consideração do custo ambiental no cálculo do custo económico. Isso significa que cerca de 80% de toda a mercadoria que sai do porto por via terrestre sai por ferrovia. No entanto, o mercado nacional de transporte ferroviário de mercadorias é composto apenas por empresas privadas (Medway e Takargo), sendo um dos poucos casos na Europa, dentro dos países considerados, em que não há um domínio da empresa pública incumbente.
No entanto, no contexto nacional, apenas 13% das mercadorias é transportada por via de comboios, sendo transportada cerca de 84% por rodovia. É de esperar que o transporte de primeiro e último quilómetro seja feito por camiões e carrinhas de menor porte eletrificadas, mas essa não é a realidade atual, existindo uma dependência clara de veículos motorizados para o transporte de mercadorias a longa distância. Seria necessária uma expansão das plataformas logísticas, uma incentivação do transporte ferroviário de longa distância e outras medidas de expansão e renovação da linha ferroviária já referidas acima para tornar este sector competitivo e realmente fazer uma descarbonização dos transportes em Portugal.
As velhas narrativas e a refinaria da Galp
Quando se fala da descarbonização dos transportes em Portugal raramente é referida a necessidade de investimento em transportes públicos, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e o Plano Nacional Energia e Clima 2030 têm capítulos sobre transportes e mobilidade, transportes públicos não recebem nem um subcapítulo. Aliás, uma das críticas recorrentes é como os carros elétricos não são assim tão amigos do ambiente e como os ambientalistas querem todos que lhes paguem um Tesla.
É essa visão individualista dos transportes que desencadeia tantas críticas quando se fala do encerramento gradual da refinaria da Galp em Sines. A refinaria é “essencial” porque todos “precisam” de gasolina para “ir trabalhar, às compras, levar os filhos à escola”, e, portanto, não a podemos fechar, talvez nunca, porque fechá-la implicava apenas que agora importávamos muito mais do estrangeiro, o que claramente é um tiro nos pés dos ambientalistas. Não é possível imaginar um mundo de transporte coletivo gratuito e renovável numa economia organizada de modo a maximizar o bem estar das pessoas e futuro do planeta Terra, e não o lucro.
Sobre a transição necessária para a refinaria da Galp e os planos de como esta poderia ser justa, será escrito um artigo completo, servindo este texto como resposta ao que é preciso fazer para ser possível essa transição. Não existe uma “reivindicação que ponha à cabeça o encerramento de qualquer instalação industrial sem uma alternativa concreta”, mas sim uma reivindicação de transição justa em todo o país, a um ritmo que seja compatível com os limites impostos pela Terra, e que tem propostas concretas sobre como a realizar, como espero que este e os outros artigos demonstrem.
Um artigo interessante, mas sendo ferroviário há algumas dezenas de anos e também um apaixonado pelo tema, não me parece possível que haja um desenvolvimento sério na ferrovia em Portugal enquanto não separarem as infraestruturas ferroviárias das infraestruturas rodoviárias, a IP-Infraestruturas de Portugal tem sido o maior travão da nossa ferrovia, é necessário colocar este tema em cima da mesa e não é preciso pensar muito para saber o porquê de tão pouco se falar disto…
Se nos focarmos só na parte ambiental do famigerado projeto ferroviário de mercadorias Sines-Grândola Norte, esse também é um tiro nos pés dos ambientalistas (e das populaçoes que aí residem) já que o único traçado proposto implica o abate de milhares de sobreiros centenários.