Com os investimentos verdes e fundos europeus a fluir para a região de Sines e com os megaprojetos de parques solares e de mineração de lítio a avançar, surgiu um debate público sobre os impactos reais destes projetos. Ao mesmo tempo, surge uma crítica do capitalismo verde e da transição energética como chavão para destruição da natureza e da economia.
Neste artigo, inserido no Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines, vamos analisar os as perspetivas dum crescimento verde em relação à crise climática e à transição justa.
§1. Queremos começar por alertar que não está a acontecer uma transição energética, apesar das declarações e discursos públicos. A nível global, as emissões de CO2 estão a aumentar e a procura de todos os combustíveis fósseis está a aumentar. Em Portugal, para cumprir a meta de limitar o aquecimento global em 1,5 ºC, é preciso cortar as emissões em 10,2% todos os anos. Isto aconteceu só uma vez até agora – em 2021 – e não há qualquer encerramento de infraestruturas poluentes agendado para esta década em Portugal. De acordo com a Lei de Bases do Clima, o Estado Português prevê esgotar o seu orçamento de carbono entre 2026 e 2037.
Por outro lado, está a acontecer uma expansão em todas as frentes energéticas. Existe um aumento mundial visível em investimento e produção de energias renováveis, veículos elétricos e extração dos minerais. Este desenvolvimento podia ser interpretado como transição se fosse ligado a um plano de redução de emissões e encerramento das infraestruturas poluentes. Por exemplo, os leilões solares ou os projetos de hidrogénio podiam ter uma cláusula que obriga as empresas a contratarem os trabalhadores da indústria de combustíveis fósseis. Ou, podia haver um plano integrado do setor energético para substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis enquanto se assegura o abastecimento. Nada disto está a acontecer nem está previsto acontecer. Por isso, interpretar os investimentos verdes como parte duma transição é fictício.
A nossa pergunta então é: seria possível, com vontade política e/ou pressão pública suficientes, substituir o capitalismo fóssil por um capitalismo verde compatível com os limites planetários?
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§2. Se o colonialismo foi a base do mercantilismo que transferiu a riqueza do Sul Global para a Europa, foram os combustíveis fósseis que asseguraram o salto para a revolução industrial e o capitalismo. Os combustíveis fósseis não são um mero instrumento: têm sido a ferramenta principal da centralização do poder e da acumulação do capital. Com o carvão, a indústria deixou de depender da presença da água e das oscilações no fluxo. A energia, a base da produção, tornou-se armazenável e transferível. Foi então possível decidir o que vai ser produzido quando e onde. Os fabricantes não mudaram da energia hidráulica para máquinas a vapor por a segunda ser mais barata, mudaram porque a segunda era mais lucrativa. Em particular, permitiu deslocar a produção para onde se podia encontrar mão-de-obra barata em vez de depender dos rios.
Historicamente, o capitalismo e os combustíveis fósseis não são dissociáveis.
Mas podemos, no presente, dissociá-los?
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§3. A associação histórica entre o capitalismo e os combustíveis fósseis cria contingências estruturais para a ação de hoje.
As petrolíferas são as maiores empresas do mundo e “são demasiado grandes para falhar”, o que explica os resgates imediatos inquestionáveis nas alturas de crise. Uma quebra séria nos valores das ações das multinacionais energéticas desencadearia um efeito dominó em toda a economia.
Entretanto, a indústria petrolífera criou também dependência nos outros setores. Hoje, é impossível continuar a produção agrícola se o abastecimento de combustível sofrer alguma disrupção. As cadeias de fornecimento correm o mundo inteiro, o que significa que todos os pontos dependem do transporte internacional. Nem conseguimos ir para o trabalho ou ter aquecimento em casa sem os combustíveis fósseis. Por causa desta dependência, anos depois da ciência climática mostrar inequivocamente a ligação entre combustíveis fósseis e a crise climática, os governos não conseguem eliminar os subsídios à indústria.
Por estas razões, temos um dilema. Por um lado, as empresas de combustíveis fósseis são os criminosos climáticos em ação: os CEOs delas acordam todos os dias e tentam fazer o seu melhor para aumentar o lucro das suas empresas. Por outro lado, os governos são obrigados a tratá-las como “stakeholders” e parceiros, porque têm um enorme poder económico global.
O resultado é que, neste momento, uma economia verde só pode ser construída com a permissão ativa das empresas de combustíveis fósseis e só nos termos delas. Podemos observar esta situação empiricamente no caso de Sines.
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§4. A região de Sines é uma espécie de sala de exposição da história que contámos acima, como artigos específicos do Estudo de Caso mostram detalhadamente.
Em 2020, a EDP encerrou a sua central termoelétrica a carvão que já funcionava só alguns meses por ano. A empresa deixou os trabalhadores para trás e seguiu para os fundos europeus de transição justa.
A Galp, dona da única refinaria de petróleo em Portugal, situada em Sines, não tem planos para encerrar a refinaria mas tem planos para processamento de lítio, para assim controlar o setor de transportes como um todo.
A Iberdrola, o novo ator no setor energético em Portugal, está a investir na central fotovoltaica THSiS em Santiago do Cacém. Em Portugal, a Iberdrola veste-se como empresa de energias renováveis, apesar do seu negócio principal ser no gás fóssil e no nuclear.
Finalmente, a Galp, a REN e a EDP têm vários projetos de hidrogénio, que devem abastecer até 10% da rede nacional de gás em 2030, o que significa que o resto vai continuaria a ser gás fóssil.
Em todos estes casos, observamos a mesma situação: as novas tecnologias estão a ser entregues às empresas de combustíveis fósseis; e por sua vez, o papel destas tecnologias no sistema energético está a ser definido de acordo com o lucro das mesmas empresas. Sendo o critério principal a otimização do mix energético para a maximização do lucro, as políticas climáticas atuais põem a sociedade refém às decisões das empresas que causaram a crise climática em primeiro lugar.
Estruturalmente, uma verdadeira transição energética não vai ser só uma transferência dos investimentos dos combustíveis fósseis para as renováveis. Uma transição energética vai ter de incluir uma transição do poder económico e político das empresas dos combustíveis fósseis ao domínio público.
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§5. Consideramos, portanto, a democracia energética como uma condição tecnicamente necessária para uma transição justa compatível com a ciência.
Por democracia energética, entendemos um setor energético alinhado com a ciência climática, com controlo público e com gestão comunitária. Isto implica um forte setor público em todos os setores-chave, empregos públicos pelo clima e um planeamento das economias nacional e europeia.
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§6. A preocupação do que um capitalismo verde, baseado na extrativismo e exploração, seria injusto e destrutivo é válida. Contudo, a nossa análise histórica e os dados empíricos mostram que esse capitalismo verde só podia existir como um anexo ao capital fóssil e não independente dele.
Um capitalismo verde como alternativa à economia atual é uma ferramenta comunicativa dos políticos e gestores, não é uma proposta real. Nenhum político defende que se consegue eliminar as ações financeiras coladas aos investimentos fósseis em tempo útil para travar a crise climática sem fazer parar a economia global.
Uma luta contra o capital fóssil será sempre, efetivamente, uma luta contra o capitalismo verde. Em primeiro lugar, como no caso de Sines, as empresas envolvidas serão sempre mais ou menos iguais. Em segundo lugar, os projetos ditos verdes vão ser sempre falsas soluções porque um dos critérios principais deles será a manutenção e legitimação da indústria dos combustíveis fósseis, como é o caso do hidrogénio.
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§7. A escolha para Sines (e Portugal) não é entre o capitalismo fóssil e o capitalismo verde. Esta forma de apresentar o problema é analiticamente e empiricamente errada, e deixa-nos sem agência. A escolha para Sines (e para Portugal) é entre o caos climático liderado pelo capitalismo e uma transição justa liderada pelas comunidades e pelos trabalhadores.
Uma verdadeira transição energética vai ter sempre de integrar uma forte componente de democratização e justiça. Isto vai envolver, de uma forma ou outra, a redução do poder económico e político das empresas multinacionais no setor energético. Isto significa uma redistribuição do poder pela população, o que só pode ser atingido por uma transformação social liderada pelas pessoas e pelos trabalhadores.